O ano de 2020 foi marcado pelo enfrentamento de um vírus mortal e, com isso, a apreensão causada pela urgência de uma vacina. Fomos positivamente surpreendidos pelo desenvolvimento em tempo recorde de vários imunizantes para o novo coronavírus e, apesar de especialistas indicarem que a volta ao “normal” deva demorar, a esperança foi renovada em grande parte da população mundial. Contudo, ao observarmos os desdobramentos das negociações pelas vacinas desenvolvidas pelas grandes indústrias farmacêuticas, é inquietante como esse processo está sendo marcado por uma forte desigualdade que pode deixar a corrida pelas vacinas cada vez mais difícil para alguns países e acabar sendo nocivo para a saúde coletiva.
Um relatório[1] produzido pela People’s Vaccine Alliance - uma aliança formada por organizações como Anistia Internacional, UNAIDS, Oxfam e Global Justice Now - ilustra bem essa disparidade: enquanto o Canadá adquiriu doses de diversas farmacêuticas num volume suficiente para vacinar sua população inteira 5 vezes, os 70 países mais pobres do mundo só devem conseguir vacinar 1 em cada 10 cidadãos no próximo ano. Segundo um modelo matemático feito pela The Economist Intelligence Unit (EIU)[2], os países mais pobres do mundo devem atingir a vacinação em massa de sua população em três anos, enquanto algumas nações podem nem mesmo atingir esse patamar.
O anúncio de grandes empresas farmacêuticas sobre os bons resultados nos testes de suas vacinas gerou uma verdadeira corrida pela imunização. Foi o caso da vacina produzida pela Pfizer, que antes mesmo de ser de fato produzida, foi cobiçada pelos países mais ricos como Estados Unidos, países integrantes da União Europeia, Canadá e Japão, que juntos adquiriram 82%[3] das 1.35 bilhões de doses prometidas pela gigante norte-americana, mesmo concentrando apenas 14% da população mundial.
Nas palavras de Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), “No fim, essas ações apenas prolongarão a pandemia, as restrições necessárias para contê-la e o sofrimento humano e econômico".[4] A diretora de pesquisas no Centro de Inovação em Saúde Global da Duke (universidade norte-americana), Andrea Taylor, confirma as palavras de Adhanom. Segundo Taylor, se os países mais pobres não assegurarem um número satisfatório de vacinas e o vírus continuar a se espalhar descontroladamente nessas regiões, novas variantes são mais propícias a surgirem. Isso é perigoso na medida em que essas cepas podem ser resistentes às vacinas já criadas[5]. É o caso da variante sul-africana: na primeira semana de fevereiro, o governo da África do Sul decidiu suspender o uso da vacina desenvolvida em parceria entre a Universidade de Oxford e a farmacêutica britânica AstraZeneca após testes apontarem que o imunizante tem eficácia reduzida frente à principal variante do coronavírus no país[6]. Mesmo que outras vacinas com maior eficácia estejam disponíveis para a população sul-africana como alternativa, a situação acende um alerta vermelho para a possibilidade de que isso aconteça com outras variantes e diferentes vacinas, ameaçando um retrocesso na campanha de imunização global.
Frente ao desafio da produção em escala mundial de forma menos desigual, algumas organizações criaram iniciativas para democratizar o acesso à vacina. Uma delas é a Covax Facility[7], uma aliança criada pela OMS que auxilia países em desenvolvimento no enfrentamento à pandemia. A Covax reúne governos, empresas farmacêuticas, organizações de saúde, cientistas, setor privado e organizações filantrópicas com o fim de garantir que o acesso ao diagnóstico, tratamento e vacinação contra a COVID-19 seja mais democrático. A coalizão conta com mais de 150 países, entre eles o Brasil, que deve receber 10,6 milhões de doses no primeiro semestre de 2021 graças ao acordo[8].
A iniciativa, contudo, esbarra em problemas de limitação de produção, logística e estoques físicos. Com isso, uma solução simples seria o compartilhamento de conhecimento processual tecnológico e direitos de fabricação de vacinas de forma que mais fabricantes possam produzi-la, aumentando a oferta e evitando alta de preços. Dessa forma, outro mecanismo criado pela OMS é a Covid-19 Technology Access Pool (C-TAP)[9], que apresenta os mesmos objetivos da Covax Facility, mas com meios alternativos para alcançá-los. A C-TAP, por meio de divulgação pública de sequências genéticas e dados, transparência na publicação dos resultados de ensaios clínicos e compartilhamento de direitos de propriedade intelectual, permite que qualquer empresa e qualquer país tenha acesso mais rápido e igualitário a vacinas e tratamentos necessários para combate à COVID-19. Porém, a iniciativa não agradou a todos e apenas 40 países a adotaram. Os mais insatisfeitos da história foram as gigantes empresas farmacêuticas como a AstraZeneca, Pfizer e Johnson & Johnson, que condenaram a ação de compartilhar dados de testes e direitos de patentes e chegaram a chamar de “absurda” essa tentativa de união voluntária feita pela OMS[10]. É necessário salientar, então, que por mais que a Covax e a C-TAP pareçam ser iniciativas semelhantes, há uma diferença fundamental: a Covax conta com investimento maciço, até das próprias empresas farmacêuticas, que esperam um retorno bilionário além do que já obtêm com os direitos de patente. Em suma, a Covax não está disposta a enfrentar o monopólio das big pharmas enquanto a C-TAP inviabilizaria o lucro das gigantes farmacêuticas, já que as empresas teriam que compartilhar propriedade intelectual com seus próprios concorrentes.
Diante da resistência dos países mais ricos e das grandes empresas farmacêuticas em contribuir com a C-TAP, um caminho semelhante e mais viável foi adotado pela Índia e África do Sul: em outubro de 2020, os governos dos países apresentaram à Organização Mundial do Comércio (OMC) uma proposta de suspensão do acordo de propriedade intelectual denominado “Aspectos Relacionados ao Comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual” (TRIPS)[11] estabelecido em 1994. As atuais regras definidas no acordo determinam que a quebra de patentes não pode ser feita de maneira unilateral, sendo passível de punição pela OMC. Caso aprovada, a proposta permitiria um maior número de fornecedores, maximizando o abastecimento global e, por consequência, ampliando o acesso à vacina por um preço reduzido.
A disputa pela vacina, que por enquanto é um bem escasso, escancarou um problema socioeconômico que acompanha a história moderna e se tornou ainda mais evidente durante esse último ano, não só no Brasil, onde podemos pegar como exemplo a discussão sobre o lockdown[12], mas em todo o mundo. A priorização da busca pelo lucro acima das vidas é uma questão notável em nossa sociedade e, no momento em que temos em risco milhões de vidas, devemos ter uma mobilização por parte dos governos em prol da vacinação em massa de todos os indivíduos e da preservação da saúde pública para que possamos superar essa crise que nos afeta em tantos aspectos.
Isadora Faé Lorena Duarte da Silva
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
[1]Campaigners warn that 9 out of 10 people in poor countries are set to miss out on COVID-19 vaccine next year. Disponível em: <https://www.oxfam.org/en/press-releases/campaigners-warn-9-out-10-people-poor-countries-are-set-miss-out-covid-19-vaccine >. Acesso em: 09 fev. 2021
[2]Africa faces major obstacles to accessing Covid vaccines. Disponível em: <https://www.eiu.com/n/africa-faces-major-obstacles-to-accessing-covid-vaccines/>. Acesso em: 09 fev.2021
[3]Most of Pfizer's vaccine already promised to richest campaigners warn. Disponível em:<https://www.globaljustice.org.uk/news/2020/nov/11/most-pfizers-vaccine-already-promised-richest-campaigners-warn>. Acesso em: 09/02/2021
[4]Vacina contra o coronavírus: OMS adverte que mundo está à beira de 'falha moral catastrófica'. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55726985>. Acesso em: 09 fev.2021
[5]Vacinas contra covid-19: 'Distribuição desigual de imunizantes vai permitir contágios e mutações do coronavírus pelo mundo. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55957986>. Acesso em: 09 fev.2021
[6] África do Sul suspende vacina de Oxford após estudo indicar proteção limitada para variante. Disponível em: <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,africa-do-sul-suspende-vacina-de-oxford-apos-estudo-indicar-protecao-limitada-para-variante,70003608610>. Acesso em: 09 fev.2021
[7] Covax explained. Disponível em: <https://www.gavi.org/vaccineswork/covax-explained>. Acesso em: 09/02/2021
[8] Diretoria da Anvisa dispensa registro e autorização emergencial para vacinas da Covax Facility. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2021/02/09/diretoria-da-anvisa-dispensa-registro-e-autorizacao-emergencial-para-vacinas-do-covax-facility.ghtml>. Acesso em: 09 fev.2021
[9] Comunidade internacional se une para apoiar pesquisa e ciência abertas na luta contra a COVID-19. Disponível em: <https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6186:comunidade-internacional-se-une-para-apoiar-pesquisa-e-ciencia-abertas-na-luta-contra-a-covid-19&Itemid=812>. Acesso em: 10 fev.2021
[10] WHO patent pool for potential Covid-19 products is ‘nonsense’, pharma leaders claim. Disponível em: <https://www.telegraph.co.uk/global-health/science-and-disease/patent-pool-potential-covid-19-products-nonsense-pharma-leaders/ >. Acesso em: 10/02/2021
[11]Vacinas contra coronavírus: o Brasil poderia 'quebrar' as patentes dos imunizantes para covid-19?. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55835203>. Acesso em: 10 fev.2021
[12] Recomendamos a leitura das resenhas “É preciso escolher entre vida e economia?” e “Flexibilização em jogo”, disponíveis em nossa revista para melhor compreensão do assunto. Cf. <https://periodicos.ufes.br/peteconomia/issue/view/1215>
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