A MÃO (IN)VISÍVEL DO MERCADO: ENTRE O DISCURSO E A PRÁTICA
- PET Economia UFES

- 8 de dez.
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Influenciados por uma linha de pensamento que reunia a filosofia jusnaturalista, a racionalidade iluminista e o liberalismo, os pensadores burgueses sistematizaram aquilo que chamamos atualmente de Ciências Econômicas. A origem dessa ciência é dada quase que como uma ciência natural, em que os fluxos de renda se assemelhavam aos fluxos sanguíneos, a ideia de um equilíbrio geral como um exame físico e matemático de um objeto sendo observado à luz das leis de Newton[1]… O que nos parece é que os economistas sempre brincaram de ser cientistas naturais e na medida em que a realidade não correspondia à abstração teórica, adaptaram essa realidade aos seus conceitos.
Adam Smith, consagrado como pai dessa economia e guardião do liberalismo clássico, possuía um rigor filosófico ancorado em uma ideia de natureza humana, em que o ser humano, agindo em seu auto-interesse, seria capaz de proporcionar prosperidade e riqueza ao conjunto da sociedade. O autor denomina que, em sua natureza, o homem é egoísta e pensa, antes de tudo, em realizar suas necessidades mais elementares[2]. Uma de suas frases mais conhecidas é justamente uma metáfora em que expõe esse argumento, enfatizando que não é da benevolência dos comerciantes que podemos desfrutar de nosso alimento, mas da consideração que eles têm por seu próprio interesse[3]. Em suma, é a ideia de que, se todos agirem conforme sua natureza e sem distúrbios nesse equilíbrio, o conjunto da sociedade caminhará para aquilo que era o objeto de estudo de Smith: a riqueza.
Seu principal pensamento — ou melhor dizendo, aquilo que os economistas neoclássicos tornaram o principal de sua obra — é a ideia de uma “mão invisível”, reguladora dos mercados e que provê alocações ótimas dentro desse sistema equilibrado. É por meio do auto-interesse de cada um dos indivíduos que a sociedade seria regulada e levada à prosperidade. Smith era um homem de sua época, guardião da aristocracia, que enxergava a economia como um cenário de experimentos físicos e o mercado como uma entidade autônoma e hipostasiada. A historicidade do capitalismo permite sugerir, porém, que os mercados, talvez, não sejam regulados por uma mão invisível, mas tenham uma mão bastante visível.
Na medida em que, no modo de produção capitalista, as relações entre os seres humanos são intermediadas por um conjunto de mercadorias, tais objetos parecem ter a capacidade de se relacionarem. As relações sociais, portanto, aparecem reificadas, enquanto os objetos aparecem dotados de vida própria. Eis aqui a justificativa fundamental para a origem do deus-mercado e sua mão invisível que tudo regula. É a mistificação de uma série de relações sociais e de sujeitos sociais que estão atuando ativamente no processo de produção e reprodução capitalista[4]. O reflexo do processo de mistificação manifesta-se, inclusive, ao atribuirmos características humanas ao mercado, como quando dizemos que o mercado está nervoso.
Smith não foi capaz de identificar essa naturalização de uma série de processos social e historicamente determinados. Para além, seus pressupostos estão calcados na existência de uma concorrência perfeita — mesmo que não dita em termos formais em sua obra —, onde individualmente nenhum agente econômico seria capaz de perturbar as condições de equilíbrio. Desde sua gênese, o capitalismo depende e reforça uma relação íntima com as forças estatais e demais “distorções de mercado” que asseguram a realização dos lucros econômicos. Tal processo não poderia ser diferente no período em que as grandes potências disputam o posto de hegemonia.
As estruturas de mercado são muito distintas da perspectiva atomista de uma concorrência perfeita, na medida em que as firmas possuem poder de mercado e capacidade de alterar preços, quantidades, qualidades e influenciar profundamente a estrutura de um setor. Tal fato não é um momento específico desse período histórico do capitalismo, mas fruto de seu desenvolvimento contínuo enquanto modo de produção.
Inerentes à revolução técnica e científica, em busca de altos ganhos, a concentração e a centralização são partes das causas e consequências para que esse modo de produção possa continuar se expandindo. Não obstante, para que possa existir também esse processo inovativo, o Estado é fundamental para capitanear, incentivar e assegurar tais ganhos.
A perspectiva do Estado enquanto depositário do desenvolvimento do modo de produção capitalista pode ser evidenciado em um recorte histórico. O economista sul-coreano Ha-Joon Chang argumenta, em sua obra “Chutando a escada”, que as nações desenvolvidas alcançaram seu desenvolvimento por meio de intensas interferências no que diz respeito à socialização das perdas e privatização dos lucros. Hodiernamente, tais nações defendem o livre-comércio e o laissez-faire e “chutam a escada” para que os países subdesenvolvidos não a utilizem, com o objetivo de impedir o surgimento de novos competidores. Assim, o neomercantilismo de Trump e as disputas geopolíticas em torno da hegemonia podem ser vistas como um resgate pragmático desse modelo, utilizando o protecionismo e a política tarifária para defender seus interesses.
“A partir de hoje, será sempre America First”[5] disse o presidente dos Estados Unidos em seu discurso de posse, em 2017, no seu primeiro mandato como presidente do país. O termo “America First” ainda é carregado como lema do presidente em seu segundo mandato e traz consigo o foco na suficiência nacional e evidencia que, após anos de um consenso de liberalizações comerciais e financeiras que dominou a economia global, Trump resgata uma política dita como abandonada, mas que não foi em sua síntese, — como analisado pelo economista Ha-Joon Chang — ao adotar o protecionismo. O republicano resgata a mesma “escada” usada pelos norte-americanos no século XIX, demonstrando que as grandes potências, em momentos de crises ou rivalidades hegemônicas, recorrem ao controle estatal para defender seus interesses[6].
O protecionismo e as guerras comerciais têm sido eixos centrais no governo Trump, em que a política tarifária tem sido parte de uma luta ampla pela hegemonia global que supera o controle de recursos minerais estratégicos, cadeias de suprimentos tecnológicos e a governança do comércio internacional. A imposição de tarifas massivas sobre os produtos de países como China, Brasil e demais países do BRICS+, é mais que apenas uma tentativa de equilibrar a balança comercial, é uma coerção econômica utilizada por Trump. É a mão bastante visível dos Estados Unidos, buscando reacender as luzes das glórias hollywoodianas e fugir do calabouço de um relativo declínio de sua hegemonia.
O governo tem investido em setores privados por meio de participações acionárias nas empresas Intel[7], mineradora MP Materials, com o objetivo de fortalecer sua liderança tecnológica global e tornar o país mais independente. Além de pressionar diretamente a Pfizer, para que sejam feitos cortes expressivos nos preços de medicamentos vendidos aos Estados Unidos[8]. Tais fatos têm provocado discussões a respeito de um movimento de transição para um modelo com maior intervenção estatal, visando objetivos políticos e econômicos: o neomercantilismo de Trump é uma ferramenta geopolítica desproporcional[9]. Em essência, a política de Trump assinala que, na alta cúpula da política global, a economia é o campo de guerra pelo posto de hegemonia.
O discurso hegemônico da ciência econômica, em sua pretensa neutralidade, camufla a historicidade de seus próprios fundamentos e transforma em leis universais aquilo que é produto de circunstâncias sociais e políticas. Sob o manto da racionalidade, a economia tornou-se a gramática do poder moderno: fala em eficiência, mas pratica dominação; invoca a liberdade, mas produz dependência; promete equilíbrio, mas se alimenta do desequilíbrio estrutural entre nações e classes.
Assim, o que se revela é que a economia capitalista — outrora apresentada como ciência das leis naturais — é, sobretudo, moldada por interesses, sustentada por mitos e legitimada por discursos que pretendem ser neutros. O mercado, a que se atribuem nervos, humores e vontades, nada mais é que o espelho de nossas próprias contradições sociais, uma metáfora viva do poder que se esconde sob o nome da liberdade. No altar do deus-mercado, talvez a oferenda mais valiosa não seja o ouro nem o trabalho, mas a própria consciência humana — sacrificada em nome de uma mão invisível que, de tão visível, já nos conduz sem que percebamos.
Emilly de Souza Santos
Kayky Barcelos de Oliveira
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017.
CERQUEIRA, Hugo E. A. da Gama. Adam Smith e o surgimento do discurso econômico. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 24, n. 3 (95), p. 433-453, jul./set. 2004. DOI: 10.1590/0101-35172004-1613.
SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
CERQUEIRA, Hugo E. A. da Gama. Adam Smith e o surgimento do discurso econômico. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 24, n. 3 (95), p. 433-453, jul./set. 2004. DOI: 10.1590/0101-35172004-1613.
ADAMS, Paul. “America First?”: o que a decisão de Trump de retirar EUA do acordo do clima diz sobre liderança global. BBC, 2 jun. 2017. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-40131127. Acesso em: 30 out. 2025.
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada: a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica. Tradução de Luís Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
REUTERS. Trump anuncia acordo com Pfizer para baratear medicamentos. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/trump-deve-anunciar-acordo-com-pfizer-para-baratear-medicamentos/. Acesso em: 31 out.
YAZBEK, Priscila. Intervenções de Trump despertam debate sobre capitalismo de Estado nos EUA. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/priscila-yazbek/economia/macroeconomia/intervencoes-de-trump-despertam-debate-sobre-capitalismo-de-estado-nos-eua/. Acesso em: 31 out. 2025.
Geopolítica desproporcional: refere-se a um estilo de política externa caracterizado por decisões imprevisíveis e ações que causam consequências desequilibradas, para o próprio país ou cenário internacional. Frequentemente aplicado à política de Donald Trump.






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