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Complexo de Vira-lata e a Ideologia da Subalternidade Cultural

  • Foto do escritor: PET Economia UFES
    PET Economia UFES
  • 6 de nov.
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Estadão. Brasileiros levam para Paulista bandeira gigante dos EUA e cartazes em inglês agradecendo Trump. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/bolsonaristas-levam-para-paulista-bandeira-gigante-dos-eua-e-cartazes-em-ingles-agradecendo-trump/?srsltid=AfmBOoqmD4k9lLx8CJys1mJkze66SNMEYVAHAx3dccLPq43L8f65rkwt. Acesso em: 03 nov. 2025.


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Em 1950, o Brasil sediou a Copa do Mundo em meio ao otimismo do pós-guerra e à certeza de que seria campeão. A final contra o Uruguai, diante de cerca de duzentas mil pessoas [1], parecia o coroamento de uma nova era até que a virada inesperada calou o país. O Maracanaço ficou marcado como uma das maiores feridas do futebol brasileiro, símbolo de um orgulho que desabou em pleno estádio lotado. Entre a bola que não entrou e a sombra que ficou sobre o Maracanã, o Brasil ganhou mais do que uma derrota: ganhou um espelho. Nesse reflexo, não se via apenas o fracasso esportivo, mas a imagem de um país que, ao mirar-se, reconhecia em si a própria insegurança: um povo habituado a medir seu valor pelos olhos do estrangeiro. 


Foi nesse contexto que o escritor Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-lata”, definindo-a como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo” [2]. A metáfora futebolística, contudo, ultrapassa o campo do esporte e se transforma em um diagnóstico moral e simbólico de uma sociedade que internaliza sua própria subordinação, convertendo a dominação externa em convicção íntima. É, segundo o autor, o gesto de “um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem” [3].


O sentimento de inferioridade que Rodrigues descreve não se limita a um traço da subjetividade do povo brasileiro, mas revela uma forma de consciência produzida social e historicamente. Em vez de resultar de uma disposição individual, a autodepreciação nacional pode ser lida à luz de um processo mais amplo de formação da consciência, condicionado pela trajetória econômica, política e cultural do país. Em A Ideologia Alemã, Marx e Engels propõem compreender o pensamento não como causa, mas como produto da vida social. As ideias, longe de emergirem de um espírito autônomo, se articulam com as condições materiais e históricas que atravessam a coletividade. Isso significa que o modo como as pessoas pensam está ligado às formas concretas de produzir, trabalhar e se relacionar em sociedade. As ideias não espelham automaticamente essas condições, mas são moldadas por elas e, ao mesmo tempo, ajudam a mantê-las ou transformá-las [4].


Em outras palavras, o que é resultado da prática social surge como seu princípio explicativo. A ideologia burguesa, constituída no bojo das relações sociais especificamente capitalistas, atua justamente nesse ponto, ao converter as relações de dominação em representações de ordem natural e inevitável. Trata-se, essencialmente, do modo pelo qual a sociedade traduz, em pensamento, as forças concretas que a sustentam. O chamado complexo de vira-lata não é, assim, uma falha no caráter brasileiro, mas um mecanismo ideológico que reproduz, no plano cultural, a mesma relação de subordinação econômica que marca nossa história desde a colonização.


Desde o princípio, a colonização do Brasil se deu sob a lógica da dependência, em uma sociedade voltada para fora, que nasceu para servir aos interesses de potências estrangeiras e organizou sua vida segundo essa hierarquia. Como observa Lélia Gonzalez: “Caracterizando sumariamente a formação social brasileira, diríamos que ela se estrutura em termos de acumulação capitalista dependente ou periférica, com conflito de interesses de classes antagônicas e onde o sistema político de dominação da classe dominante é rigoroso” [5]. Essa estrutura de dependência material e política não permaneceu restrita ao plano econômico na medida em que se prolongou na cultura e na consciência do povo brasileiro. 


Essa dimensão subjetiva da dominação também foi analisada por Frantz Fanon, ao estudar os efeitos psíquicos do colonialismo sobre os povos subjugados. Para o autor, “A inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia” [6]. A dominação não se restringe à força material do colonizador, mas produz o sentimento de inferioridade como parte de sua eficácia. O colonizado aprende a reconhecer o outro — o europeu e, mais tarde, o americano — como medida de valor e a enxergar em si mesmo o sinal da falta. Esse movimento decorre de um apagamento violento de referências culturais, identidades e formas de vida dos povos originários, que são suprimidas e substituídas pelos padrões e valores do colonizador. O resultado é uma consciência dividida, em que o desejo de emancipação convive com a necessidade de aprovação do opressor. No caso brasileiro, o processo de formação nacional instituiu o europeu como ideal de humanidade e relegou o que lhe escapava a uma condição de atraso. Foi assim que a dependência material da colônia se converteu, historicamente, em dependência de consciência, sustentada por mecanismos ideológicos que naturalizam a dominação.


O “vira-latismo”, longe de se encerrar como um fenômeno do passado, reaparece na vida contemporânea sob novas formas de colonização simbólica [7]. Hoje, o futebol já não é o único espelho a refletir de maneira distorcida nossa imagem. As vitrines do consumo, as telas da mídia e as redes sociais continuam a projetar o valor do que é estrangeiro acima do que é nacional. Sob o verniz da globalização, a herança colonial se renova, projetando padrões estéticos, culturais e até morais, que reafirmam a antiga hierarquia entre o centro e a periferia [8]. Esse movimento expressa o que autores pós-coloniais identificam como subalternidade: uma condição em que o sujeito oprimido adota a linguagem, os valores e as referências do dominador, tornando-se incapaz de ser plenamente reconhecido fora das estruturas que o marginalizam [9].


No Brasil, essa relação não se impõe pela força, mas pelo apelo de parecer moderno e bem-sucedido, o que, em grande medida, significa assemelhar-se ao outro. A inferiorização se torna parte cultural, e o sentimento de pertencimento é substituído por uma busca constante de valorização. O vira-latismo, nesse sentido, traz uma dependência que se reinventa sob o disfarce da autonomia. De modo quase imperceptível, a mídia e a indústria cultural reforçam esse reflexo distorcido que o país insiste em contemplar. As narrativas que circulam nos meios de comunicação atualizam o velho complexo ao reproduzir uma visão de Brasil sempre “em falta”, “em desenvolvimento” ou “precisando aprender com o outro” [10]. Mesmo diante dessa permanência, novas expressões culturais começam a se afirmar. Das periferias, das ruas, da música popular e da literatura marginal emergem formas de reconstruir o sentido da experiência subalterna, transformando aquilo que antes era sinal de exclusão em fonte de identidade e criação coletiva. Apesar dessas expressões não romperem totalmente com a lógica herdada da colonização, elas abrem espaço para outras narrativas sobre o país. 


Esses espaços de criação recusam o papel de cópia e afirmam o direito à diferença, e o que antes era vergonha torna-se afirmação, e a mistura, o improviso e o humor passam a ser reconhecidos à luz das discussões sobre identidade e resistência cultural [11] como marcas de uma estética própria e de uma nova forma de pertencimento. A cultura popular marginalizada transforma-se em instrumento de crítica e reinvenção, desmontando as hierarquias simbólicas que sustentam a dependência. Essa virada também se manifesta no campo digital, em que a cultura periférica encontra novas formas de expressão e alcance. Como mostra uma pesquisa realizada pela professora Simone Pereira de Sá, do Departamento de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), artistas das periferias têm usado as redes sociais para transformar o espaço virtual em território político, ampliando vozes historicamente silenciadas e ressignificando o que se entende por produção cultural [12]. Nessa nova cena, o funk e o rap periférico emergem como expressões que tratam de desigualdade, racismo e identidade nas plataformas online, convertendo a arte em um meio de denúncia e afirmação. Nesse ambiente, a estética popular deixa de ser vista como alternativa e passa a ocupar o centro das narrativas sobre o país, questionando os padrões de legitimação impostos pelas elites culturais e midiáticas.


O complexo de vira-lata, mais do que uma herança simbólica, é um modo de existir, um reflexo incorporado à experiência coletiva que transforma a subordinação em desejo de reconhecimento [13]. Suas expressões mudam ao longo do tempo, mas a estrutura que o sustenta resiste e se reinventa. Ainda assim, as vozes que emergem das margens revelam a possibilidade de outra consciência, uma que não busca aprovação, mas entendimento. Logo, o desafio não é negar o passado, e sim compreendê-lo como parte de um processo histórico para que o país possa, enfim, reconhecer-se plenamente, rompendo com a lógica subalterna que molda a visão de si mesmo.


“O importante é inventar o Brasil que nós queremos.”

Darcy Ribeiro


Hemille Barbosa Uchôa

Isadora Freire Camargo

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  1. SOUZA, Denaldo Alchorne de. Maracanazo: a tragédia de 16 de julho de 1950 (1ª parte). Ludopédio, São Paulo, v. 189, n. 3, 2025. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/maracanazo-a-tragedia-de-16-de-julho-de-1950-1a-parte/?srsltid=AfmBOoo8c7DqgUFOIVbeSbYtcTyxsolMmH65Zw_83tMyKK4g4vbSzzqf#sdendnote1sym. Acesso em: 01 nov. 2025.


  2. RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. Seleção e notas de Ruy Castro. 3. reimpr. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 61.


  3. Ibidem, p. 59.


  4. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 94.


  5. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Márcia Lima e Flávia Rios. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 84.


  6. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento; colaboração de Raquel Camargo. Prefácio de Grada Kilomba. São Paulo: Ubu Editora, 2022, p. 67.


  7. DE SOUZA, Marcelo Henrique Marques. O complexo de vira-lata e o vira-lata complexo. TRANZ-revista de uma publicação de estudos transitivos do contemporâneo, v. 8, n. December, p. 1-5, 2013.


  8. DE OLIVEIRA JR, Eduardo F. Do complexo de vira-lata ao multiculturalismo cru. Revista Científica Doctum Multidisciplinar, v. 1, n. 2, 2019.  Disponível em: https://revista.doctum.edu.br/index.php/multi/article/viewFile/280/222.. Acesso em: 20 nov. 2025.


  9. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the subaltern speak?. In: Imperialism. Routledge, 2023. p. 171-219.


  10. ABREU, Diego. O complexo de vira-lata e a solução Porto Rico: uma análise discursiva da ideologia do viralatismo na mídia hegemônica brasileira. Disponível em: https://periodicos.ufop.br/caletroscopio/article/view/6795. Acesso em: 20 nov. 2025.


  11. DE OLIVEIRA JR, Eduardo F., op. cit., p. 3.


  12. UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF). Das favelas para o feed: pesquisa analisa o impacto político de artistas periféricos. Niterói: UFF, 17 jul. 2025. Disponível em: https://www.uff.br/17-07-2025/das-favelas-para-o-feed-pesquisa-analisa-o-impacto-politico-de-artistas-perifericos/. Acesso em: 23 out. 2025.


  13. ABREU, op. cit., p. 5.

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