A pandemia do novo coronavírus mudou drasticamente os hábitos de grande parte da população mundial. Sendo o isolamento social uma das principais medidas para evitar a disseminação do vírus, o recolhimento domiciliar passou a ser uma nova configuração social. Com isso, o uso de redes sociais se intensificou notadamente, afinal, as interações virtuais passaram a substituir - ou pelo menos tentar - as interações sociais. Dessa forma, muitos aplicativos que proporcionam esse tipo de interação entraram em ascensão. Exemplos são o Google Meet, o Zoom, Microsoft Teams, Discord, entre outros. É notória também a “febre” de aplicativos de entretenimento de vídeos curtos como o TikTok e o Kwai para passar o tempo livre nas redes.
Os dois aplicativos estão entre os mais baixados no Brasil e no mundo e, apesar de nomes distintos, as funcionalidades são semelhantes. Nos apps, vídeos de 15 a 60 segundos podem ser feitos e postados gratuitamente por qualquer usuário, que liberam a criatividade usando as ferramentas que a plataforma oferece a fim de conseguir likes ou apenas se divertir. É comum ver muitos vídeos dos usuários fazendo dancinhas, contando relatos sobre a vida, cenas engraçadas, além de publicidades e propagandas de pequenos negócios ou grandes marcas, afinal, afinal, em uma sociedade capitalista, tudo se torna mercadoria.
Se um dia você receber uma mensagem de um colega pedindo para “usar o código”, não estranhe, é mais uma das funcionalidades que os aplicativos oferecem. O tal código faz parte de um programa de recompensas em dinheiro, e cada amigo convidado chega a “valer” R$80. Quanto mais amigos, mais dinheiro, mas claro, seu colega e você precisam seguir as regras do app, que consistem em usá-lo por uma certa quantidade de tempo diariamente, além de, claro, ao criar uma conta no app, usar o famigerado código compartilhado. O Kwai, particularmente, lidera no ramo de propagandas exorbitantes e chamativas, quase sempre o app oferece promoções e eventos em que prometem altos retornos financeiros para os dedicados, que podem ser recompensados em até R$2.400,00[1], apenas convidando amigos e usando o app.
Falando de números, a empresa que gerencia a plataforma TikTok, a Bytedance (empresa chinesa), em 2021 foi avaliada em $400 bilhões de dólares[2], cerca de 2 trilhões de reais. Os números exorbitantes não param por aí: ao final de 2020, a empresa relatou que possuía cerca de 1.9 bilhões[3] de usuários ativos mensalmente. O Kwai, também de origem chinesa, gerenciado pela empresa Kuaishou Technology, e concorrente direto do TikTok, foi avaliado em Janeiro de 2021 em valor de mercado, por cerca de $220[4] bilhões de dólares e também conta com cerca de 700 milhões[5] de usuários ativos mundialmente.
Esse fluxo monetário não advém apenas do uso dos códigos, existem outros recursos que os aplicativos exploram para lucrar. Assim como em outras redes sociais, os influencers - ou simplesmente influenciadores digitais - têm se destacado. São personalidades com uma grande gama de seguidores que se sobressaem nessas redes por aplicarem estratégias de influência com a finalidade de monetizar o próprio conteúdo. Uma dessas personalidades que se destaca no aplicativo TikTok é a jovem de 20 anos Addison Rae, que ao atingir 1 milhão de seguidores na plataforma, decidiu abandonar o curso de jornalismo na Universidade do estado de Louisiana, nos Estados Unidos, para se dedicar a ganhar dinheiro com marketing em plataformas digitais. No ano de 2019, antes mesmo do app realmente estourar, a tiktoker faturou mais de 5 milhões de dólares[6] e registrou mais de 40 milhões de seguidores, número que mais que dobrou após o início da pandemia e o consequente boom no app.
Já no Brasil, uma reportagem da revista Veja São Paulo[7] traz o relato de Luciano do Valle, um jovem de 23 anos que abandonou o curso de Engenharia Civil para se dedicar exclusivamente ao TikTok, onde chega a ganhar até 11 mil reais por publicidades patrocinadas por grandes marcas como Rexona e O Boticário. Com mais de 8 milhões de seguidores, o jovem diz que não se arrepende de ter largado a faculdade, porém relata que a mãe demonstrou tremenda preocupação pelo futuro do jovem, que foi o único dos irmãos que conseguiu adentrar ao ensino superior.
É comum que surja uma dúvida quando se expõe uma enorme quantia de dinheiro envolvido em simples aplicativos de vídeos curtos. Apesar de parecer complexo, as estruturas e mecanismos que permitem tal circulação não são novas, porém, a faceta capitalista foi maquiada de forma maestral, tornando meros aplicativos em um grande mercado lucrativo que movimenta bilhões. Que o lucro é o elemento que move o capitalismo chega a ser uma afirmação considerada até senso comum para muitos, porém, a forma que o sistema se reconfigura a fim de aperfeiçoar a produção cada vez maior de rendimentos nem de longe pode ser considerada obsoleta. A internet foi mais uma dessas ferramentas que o sistema se apossou como forma de criar novas relações de mercado, e evidentemente obteve sucesso.
Em “A complexa arquitectura da futilidade”, o ensaísta português João Bernardo definiu a internet como uma Ágora[8]. Na Ágora moderna não falta espaço para opiniões e idealizações, é um reino livre para a germinação de diversas ideias, o campo perfeito para o crescimento do capitalismo, que passa a valer-se dessa esfera para aumentar sua produtividade e intensificar a exploração de mais-valia, segundo Bernardo. Uma das ferramentas utilizadas para essas operações é o uso de dados e performance de algoritmos, que fazem grande parte do trabalho quando o assunto é manter o usuário nos aplicativos.
A evolução tecnológica se torna cada vez mais assustadora àqueles que a consideram apenas uma ferramenta de ajuda para atividades cotidianas. As empresas procuram cada vez mais novas ferramentas que reconheçam o perfil e gostos dos usuários a fim de atingir o público alvo de certas propagandas e conteúdos. Na obra “Capitalismo de Plataforma”[9], o professor de economia digital Nick Srnicek ressalta a relevância dos algoritmos para o mercado. Segundo Srnicek (2016, p. 38) “A extração de dados está se tornando um método chave para a construção de uma plataforma monopolista e de desvio de lucros para os anunciantes”. A "ForYou Page" ou simplesmente FY, presente no TikTok, é a síntese perfeita de como o algoritmo e a coleta de dados te fazem permanecer imerso no app durante horas. Trata-se da área principal do aplicativo, a primeira coisa que aparece na tela ao se iniciar. Nela, dependendo dos vídeos que curtir ou do tempo assistido em um vídeo de determinado assunto, o algoritmo vai se moldando a seus gostos, personalidade, áreas de interesse e muito mais, criando um ambiente viciante e personalizado para você.
De fato, ainda não vimos os limites que a rede de informações possuem - sim, ainda há muito que a internet pode fazer - porém, a pressão que ela exerce sobre o mercado é perceptível. As plataformas viraram até um local de busca de mão de obra, como expõe uma matéria da revista Forbes[10], em que empresas norte-americanas lançaram um programa piloto intitulado “TikTok Resume”, no qual os usuários podem pesquisar e se candidatar para empregos através de vídeos na plataforma mostrando suas qualificações. Percebendo essa movimentação, a plataforma LinkedIn, criada justamente com o intuito dos usuários exporem suas qualificações e aptidões em busca de um emprego, rapidamente lançou um recurso na tentativa de não ser ultrapassada pelo TikTok: o “Cover Story” foi disponibilizado na plataforma para que os usuários façam uploads de vídeos curtos em seus perfis.
Diante disso, é visível como o TikTok e Kwai otimizaram suas ferramentas de forma a exercer a tarefa capitalista, movimentando dinheiro e gerando lucro por propagandas nos apps, chegando a números astronômicos ao utilizar estratégias de interação dos usuários de forma semelhante à plataformas como iFood e Shipp, de entrega de alimentos; Uber, Lady Driver e 99 Pop, serviços de transporte privado. Todos esses aplicativos têm algo em comum: além de lançar mão do uso massivo de propagandas direcionadas, atuam como ‘mediadores’ do trabalho prestado pelos usuários se eximindo de qualquer tipo de vínculo empregatício com estes, apenas recolhendo parte do dinheiro gerado pelo trabalho das pessoas. Essas semelhanças foram identificadas como uma tendência global de consolidação de novas formas de trabalho que retratam um longo processo de precarização e indicam um campo propício para que novas plataformas e redes sociais sejam utilizadas para complemento de renda.
Chegamos a um ponto onde simples aplicativos de vídeos que deveriam servir meramente para entretenimento, como o TikTok e Kwai, passaram a servir de “amparo” e meio para gerar a renda mensal de quem se empenhar pelo uso do app. O portal de notícias britânico BBC publicou uma reportagem em 2020 intitulada “Ser famoso no TikTok realmente dá dinheiro?”[11] que ilustra isso. A matéria apresenta perfis de jovens com milhões de seguidores na rede social que não recebem um dinheiro proporcional a esse número. Em muitos dos casos, os jovens utilizam o dinheiro gerado para complementar sua renda e ajudar no dia a dia da vida universitária sem ter que recorrer a um emprego que tome muito tempo dos estudos.
Com a taxa de desemprego recorde no país na casa dos 14.7%, cerca de 14.8 milhões de brasileiros[12], é de se esperar um contingente jovem e desamparado, procurando novas formas de renda. A massa precarizada infelizmente vem sendo o presságio de um futuro que tem se tornado real. As constantes evoluções do sistema capitalista e sua integração total com a tecnologia criou uma massa de jovens que constantemente - e, infelizmente - é forçada a abrir mão da formalidade conquistada pela carteira de trabalho, leis trabalhistas ou uma graduação, não por vontade própria, mas sim devido a conjuntura atual do país e do mundo. Com mais e mais empregos se materializando em códigos e dados virtuais, e falta de esforços que prezam pela criação de empregos dignos, é de se esperar um aumento na informalidade. A internet trouxe o conhecimento, e os ramos das suas possibilidades e influências se espalharam por diversos campos, inclusive na massa trabalhadora capitalista. Os problemas causados por ela não serão resolvidos virtualmente, cabendo a órgãos governamentais e estatais, amparar aqueles que dependem de aplicativos, vivendo na informalidade, sem direitos e leis de amparo.
Algo tão simples quanto o compartilhamento do código de um aplicativo de vídeos esconde uma história de jovens abandonando seus estudos e entregando sua renda para algoritmos que podem até te conhecer melhor que amigos próximos. Os altos retornos financeiros, apesar de serem atraentes, são praticamente inalcançáveis e reproduzem uma realidade angustiante em que aplicativos simples de vídeos curtos não são uma simples ferramenta de diversão e lazer, e sim mais um retrato de uma das inúmeras facetas do capitalismo. O compartilhamento de códigos esconde toda uma estrutura complexa e infeliz de pessoas dependendo disso para a garantia de uma renda extra, ou em outros casos, a única renda.
Daniel de Almeida Bahiense Isadora Faé Pacca Amaral.
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
[1]Lennon Hass. Acústica FM. Renda extra: promoção do Kwai paga até R$ 2400 para usuários; saiba como participar. Disponível em: <https://www.acusticafm.com.br/noticias/42819/renda-extra-promocao-do-kwai-paga-ate-r-2400-para-usuarios-saiba-como-participar.html> Acesso em: 26 jun. 2021 [2] Value of TikTok maker ByteDance approaches US$400 billion for new investors, sources say. Disponível em: <https://www.scmp.com/tech/big-tech/article/3128002/value-tiktok-maker-bytedance-approaches-us400-billion-new-investors> Acesso em: 02 jul. 2021 [3] TikTok Owner ByteDance’s Annual Revenue Jumps to $34.3 Billion.Disponível em: <https://www.wsj.com/articles/tiktok-owner-bytedances-annual-revenue-jumps-to-34-3-billion-11623903622> Acesso em: 02 jul. 2021 [4] Rival do TikTok, app de vídeos quer emplacar streaming e comércio ao vivo. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/colunas/felipe-zmoginski/2021/02/17/rival-da-tiktok-quer-conquistar-o-brasil-com-streaming-e-comercio-ao-vivo.htm#> Acesso em: 02 jul. 2021 [5] Sobre nós. Disponível em: <https://www.kwai.com/about/> Acesso em: 02 jul. 2021 [6] Os 7 influenciadores mais bem pagos do TikTok. Disponível em: <https://forbes.com.br/escolhas-do-editor/2020/08/os-7-influenciadores-mais-bem-pagos-do-tiktok/>. Acesso em: 27 jun. 2021 [7] TikTok bomba na quarentena e lança nova geração de influenciadores. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/15-segundos-de-fama-tiktok-bomba-durante-a-quarentena/>. Acesso em: 15 jul. 2021 [8] Nome dado a praças públicas onde os residentes gregos se reuniam para discutir assuntos diversos relacionados a cidade. [9] SRNICEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2016. [10] Empregadores estão migrando do LinkedIn para o TikTok para atrair jovens talentos. Disponível em: <https://forbes.com.br/carreira/2021/05/empregadores-estao-migrando-do-linkedin-para-o-tiktok-para-atrair-jovens-talentos/> Acesso em: 28 jun. 2021 [11] Does being 'TikTok famous' actually make you money?. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/business-50987803 >. Acesso em: 15 jul. 2021 [12] Desemprego. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php> Acesso em: 27 jun. 2021
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