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Uma "Solução" Problemática!

Atualizado: 2 de ago. de 2021


Portal do Professor. Medicamentos - O risco da automedicação. Disponível em: <http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=7258 >Acesso em: 13 jul. 2021.


Caso alguém estivesse com dor de cabeça, o que você recomendaria a essa pessoa? Ou, então, se fosse dor nas costas? Ou dor de barriga? Talvez, ao ler essas perguntas, você possa ter pensado em nomes de medicamentos que poderiam resolver esses problemas, não é mesmo? Mas será que de fato eles seriam a solução? Será que talvez eles não agravariam ainda mais o problema?


Antes de entrarmos um pouco mais nessa questão, é necessário ter em mente o que é um medicamento. Assim, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 301, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)[1], de 22 de agosto de 2019, que dispõe sobre as boas práticas de fabricação de medicamentos, determina o medicamento como sendo um “produto farmacêutico, tecnicamente obtido ou elaborado, com finalidade profilática, curativa, paliativa ou para fins de diagnóstico”. Deste modo, embora esta seja a definição atual do que é um medicamento, o uso de medicações não é algo recente.


O desenvolvimento das medicações se deu em diferentes locais e momentos históricos, como em 1960, quando Sérgio Henrique Ferreira, da Faculdade de Medicina/USP Ribeirão Preto isolou, a partir do veneno da jararaca, uma substância que culminou na produção do captopril, um anti-hipertensivo[2]. Tais avanços permitiram a superação de diversas doenças, controle de epidemias e uma melhor qualidade de vida. Contudo, apesar desses benefícios notáveis, quando utilizados de forma indiscriminada, os medicamentos podem trazer graves consequências. Essa situação nos conduz a um problema enraizado na cultura de grande parte dos brasileiros, a automedicação, que se refere ao uso de medicamentos sem prescrição médica. Embora se automedicar possa trazer alívio para alguns sintomas no curto prazo, esse ato pode gerar problemas graves, como por exemplo o agravamento de doenças preexistentes e a intoxicação. Uma pesquisa realizada em 2019 pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF)[3], apontou que 77% dos brasileiros se automedicam, sendo que destes, 47% o fazem ao menos uma vez por mês. Além disso, com base na pesquisa "Automedicação no Brasil (2018)”[4], feita pelo Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade (ICTQ), dor de cabeça (56%), febre (32%) e resfriado (31%) são os principais sintomas que levam as pessoas a se automedicar. Ademais, entre os principais medicamentos consumidos por conta própria têm-se os analgésicos (48%), os anti-inflamatórios (31%) e os relaxantes musculares (26%). Assim, de acordo com o CFF, não é porque há medicamentos que são vendidos sem prescrição que eles devem ser utilizados sem consulta médica, visto que até mesmo medicamentos comuns, de venda livre, podem trazer sérios danos ao organismo. A título de exemplo, quando consumidos em excesso, o paracetamol é capaz de gerar hepatite tóxica e a vitamina D de fazer com que o cálcio se deposite nos rins, podendo gerar lesões permanentes. Esses foram apenas alguns exemplos, pois todos os medicamentos, seja em menor ou maior intensidade, oferecem riscos quando tomados de forma indiscriminada.


Com isso, é importante analisarmos alguns fatores que contribuem para que essa cultura se perpetue. Entre eles, podemos destacar a facilidade no acesso e a variedade de medicamentos disponíveis, pois não só há um enorme quantitativo de estabelecimentos físicos que vendem esses produtos, como também se torna possível a compra até mesmo online. De acordo com o CFF, havia no Brasil, em 2020, 89.879 farmácias e drogarias comerciais[5]. Somado a isso, há o fator cultural em que, baseados em suas próprias experiências, muitos familiares têm o costume de se automedicar, como indica a pesquisa realizada pelo CFF. Aliada a essa situação, tem-se também fatores como renda, pois muitas pessoas não possuem condições de pagar por uma consulta ou exame diagnóstico, fato que evidencia a importância de investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), o qual vem sendo cada vez mais sucateado, não conseguindo atender, de modo pleno, toda população. Em contrapartida, os danos advindos da automedicação custam ao SUS cerca de R$60 bilhões anualmente[6]. Para mais, a “falta” de tempo e o cansaço também são fatores que levam muitos a não procurar ajuda profissional.


Além disso, é importante destacar o avanço dos meios de comunicação, principalmente da internet, que faz com que, em apenas um clique, se tenha milhares de sites com diversas informações como sintomas, causas e tratamento de enfermidades, o que leva muitos a acreditar que com isso são capazes de se autodiagnosticar. Um estudo de 2018 do ICTQ mostrou que 40% dos pacientes usam a internet para se autodiagnosticar e se automedicar, sendo que destes a maioria possui o ensino superior e são das classes A e B[7]. Sobre os meios de comunicação é vital salientar o peso que a publicidade desempenha, pois cada vez mais as farmacêuticas vêm investindo em marketing, com propagandas massivas falando sobre o alívio rápido que determinados medicamentos proporcionam e fazendo uso de personalidades conhecidas como forma de ganhar maior adesão do público. Inclusive, com base no artigo “Propaganda de medicamentos no Brasil. É possível regular?”[8], de Álvaro César Nascimento, parte dessa problemática vem da própria RDC 102/2000, da Anvisa, que deveria, em tese, regulamentar essa forma de publicidade, mas que na verdade deixa muitas brechas que acabam por incentivar a automedicação. Como destacado por Nascimento, essa resolução é problemática pois determina que as medidas contra publicidades que podem trazer algum risco para população sejam efetuadas a posteriori, ou seja, quando a exposição já ocorreu; as multas têm valor irrisório comparado ao lucro obtido pela venda dos medicamentos veiculados e não há mecanismos que impeçam que elas sejam repassadas ao preço pago pelo consumidor; além da frase obrigatória “ao persistirem os sintomas o médico deverá ser consultado”, que induz a população a antes se automedicar e somente se os sintomas persistirem procurar ajuda médica. Com isso, uma proposta interessante e que já é adotada em países como Reino Unido, França, México e Equador, é a apresentação e a aprovação prévia dessas publicidades, o que impede que determinadas campanhas sejam disponibilizadas à população.


Desta maneira, essas situações que corroboram para que a população se automedique são extremamente nocivas, pois os riscos da automedicação são muitos e afetam inclusive outros indivíduos. Um exemplo é o uso indiscriminado dos antibióticos que leva ao desenvolvimento de bactérias cada vez mais resistentes (superbactérias), o que dificulta o combate a infecções. Por esse motivo, a partir de novembro de 2010, através da RDC 44, a Anvisa determinou que a venda de antibióticos só poderia ocorrer com prescrição médica, sendo que uma via deve ficar retida na farmácia, além de que todas essas prescrições devem ser registradas no Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC)[9]. Além dos antibióticos, outros medicamentos necessitam da apresentação de prescrição médica, é o caso dos que possuem tarja preta ou vermelha. Medicamentos tarja preta são os psicotrópicos, usados em distúrbios do sistema nervoso central, como antidepressivos e antiepilépticos, sendo que o uso indevido destes pode levar ao coma e até a morte. Os de tarja vermelha, como os antibióticos, são menos nocivos, mas também podem trazer efeitos graves. Entretanto, nem todos requerem que uma via da receita seja retida na farmácia, o que possibilita a venda de muitos desses medicamentos sem prescrição médica.


Outro risco se dá devido ao armazenamento em casa, com a criação de uma espécie de “farmácia caseira”, em que muitos medicamentos são guardados de forma indevida, além da não verificação da validade, fatos que não só reduzem a eficácia, como também podem torná-los tóxicos. Com base no Sistema Nacional de Informação Tóxico-Farmacológicas (SINTOX), no ano de 2017 os medicamentos ocupavam a primeira posição dos casos de intoxicação por agente tóxico e seco, com 27,11% dos casos, e o segundo maior número de óbitos. O maior número de intoxicações se deu com crianças entre 0 e 4 anos, o que alarma ainda mais para os riscos de se armazenar medicamentos em casa, seguido pelos casos entre adultos de 20 a 29 anos[10].


Além disso, a automedicação pode agravar doenças pré-existentes, como analgésicos e anti-inflamatórios que podem intensificar problemas gástricos, ter efeito anticoagulante, gerar hemorragias, prejudicar pacientes com problemas cardíacos ou renais e agravar a hipertensão. As medicações também podem interagir entre si, alterando sua eficácia ou potencializando seus efeitos. Há também os riscos de ocasionar reações alérgicas, como os antitérmicos, podendo gerar edemas (inchaço) na glote impedindo a passagem de ar para os pulmões. Ademais, há o risco de se promover a dependência, como no caso de descongestionantes nasais, que podem levar também a taquicardia, elevação da pressão arterial e rinite medicamentosa[11].


A partir de 2020, com a pandemia da Covid-19, a automedicação se intensificou ainda mais, pois no desespero de encontrar uma forma de proteção, muitas pessoas passaram a fazer uso de medicações sem eficácia comprovada. Essa situação é conhecida como “infodemia”, quando há um compartilhamento excessivo de informações não acuradas em situações extremas, como de uma pandemia. Inclusive, o próprio presidente da República contribuiu para essa disseminação, e, lamentavelmente, permanece o fazendo, com a promoção de muitos medicamentos que já foram cientificamente descartados no tratamento contra a Covid-19 devido à sua ineficácia comprovada. Entre eles, se destacam cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, medicamentos que passaram a integrar o “tratamento precoce”, também conhecido como “kit covid”.


Como dito anteriormente, a regulação medicamentosa no país é de responsabilidade da Anvisa, todavia os médicos são os profissionais que diagnosticam a enfermidade a fim de definir o melhor tratamento possível. No início da pandemia como não se possuía nenhuma forma de tratar a Covid-19 - e até o dado momento não há, - estes medicamentos foram utilizados para prover um acolhimento para os pacientes e também a fim de se testar as drogas disponíveis, que são utilizadas em outras doenças, para essa nova que acabara de surgir. Contudo, após quase 16 meses do início da pandemia uma série de médicos ainda prescrevem os mesmos, corroborando com a desinformação. O próprio Conselho Federal de Medicina defende até o momento que médicos possam prescrever indiscriminadamente[12], contra as evidências científicas, contra as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e contra a comunidade científica internacional e nacional. Um exemplo do que a promoção desses medicamentos causa, mesmo depois da ineficácia comprovada contra Covid-19, foi dada pelo doutor em microbiologia Atila Iamarino: “imagina que você quer mandar as pessoas para morrer, se você pegar essas pessoas e colocar em um avião e pedir para elas pularem, elas não vão querer pular, porque estão sem paraquedas. Você vai fazer mais pessoas pularem se der uma mochila sem paraquedas dentro, pois elas vão se sentir seguras”[13]. O tratamento precoce no Brasil dá uma falsa sensação de segurança para as pessoas, elas se expõem mais ao vírus e atrasam a busca profissional em UPA’s e hospitais quando começam a se sentir mal.


Para se ter uma ideia do contingente de pessoas que aderiram a esses “kits”, a hidroxicloroquina e a cloroquina tiveram suas receitas aumentadas de R$55 milhões em 2019 para R$91,6 milhões em 2020, enquanto a ivermectina passou de uma venda de R$44 milhões em 2019 para R$409 milhões em 2020. Esses e outros medicamentos representaram uma movimentação de cerca de R$500 milhões nas farmacêuticas nacionais em 2020[14], ou seja, essa disseminação de informações não só elevou a automedicação, como também foi extremamente benéfica para muitas empresas do ramo farmacêutico, muito embora, após algum tempo, muitas afirmaram que tais medicamentos não eram seguros no tratamento da Covid-19. De acordo com o médico infectologista Fernando Martins Selva Chagas, em entrevista ao G1, ele não só presenciou casos graves ou até óbitos de pessoas que fizeram uso do tratamento precoce, como também casos de pacientes que desenvolveram pancreatite pelo uso prolongado da ivermectina, pacientes apresentando arritmia cardíaca com causa provável o uso indiscriminado de azitromicina, entre outros[15]. Logo, é possível perceber que essa prática, ao invés de gerar proteção contra a Covid-19, acabou acarretando outros problemas para aqueles que passaram a fazer uso desses medicamentos de forma indiscriminada.


Desta forma, é notável que a automedicação é algo enraizado na cultura de grande parte dos brasileiros, com destaque para a intensificação do fenômeno durante a pandemia da Covid-19. Tendo em vista os efeitos adversos que essa prática pode acarretar, fato que, lamentavelmente, foi ainda mais evidenciado nesta pandemia, torna-se necessário encarar a automedicação com mais atenção. É preciso que não só o governo adote medidas como controle de publicidades e campanhas de conscientização, mas também pensar-se de fato a automedicação é uma solução ou se é um problema com danos tão graves quanto os motivos que nos levam a ela.


Bruna Cavati Plínio Natalino

Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.

[1] A Anvisa é a agência responsável pelo controle da produção e do consumo dos medicamentos no Brasil, e é vinculada ao Ministério da Saúde. [2] Lauro D. Moretto. A história dos medicamentos: a fantástica evolução. Disponível em: <http://www.academiafarmacia.org.br/A%20hist%C3%B3ria%20dos%20Medicamentos%20-%20A%20fant%C3%A1stica%20evolu%C3%A7%C3%A3o%20-%20Prof.%20Dr.%20Lauro%20D.%20Moretto%20e%20Dagoberto%20de%20Castro%20Brand%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 08 jul. 2021. [3] BRASIL. DATAFOLHA. CFF. Uso de Medicamentos. Brasília: 2019. 84 p. Disponível em: <https://www.cff.org.br/userfiles/file/Uso%20de%20Medicamentos%20-%20Relat%c3%b3rio%20_final.pdf >. Acesso em: 09 jul. 2021. [4] Instituto de Ciência, Pesquisa e Tecnologia. Automedicação no Brasil (2018). Disponível em: <https://www.ictq.com.br/pesquisa-do-ictq/871-pesquisa-automedicacao-no-brasil-2018 >. Acesso em: 07 jul. 2021. [5]Conselho Federal de Farmácia. Dados 2020. 2021. Disponível em: <https://www.cff.org.br/pagina.php?id=801&titulo=Boletins>. Acesso em: 10 jul. 2021. [6] FREITAS, Gabriel. Ensaios sobre os custos da mortalidade associada ao uso de medicamentos no Brasil. 2017. 195 f. Tese (Doutorado), 2017. Cap. 9. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/174473/001061117.pdf?sequence=1&isAllowed=y >. Acesso em: 09 jul. 2021. [7] Egle Leonardi. Autodiagnóstico médico no Brasil - pesquisa na íntegra. Instituto de Ciência, Pesquisa e Tecnologia. Disponível em: <https://www.ictq.com.br/varejo-farmaceutico/785-autodiagnostico-medico-no-brasil-pesquisa-na-integra >. Acesso em: 10 jul. 2021. [8] NASCIMENTO, Álvaro César. Propaganda de medicamentos no Brasil: é possível regular? Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 14, n. 3, p. 869-877, jun. 2009. FapUNIFESP (SciELO). <http://dx.doi.org/10.1590/s1413-81232009000300022> . Acesso em: 10 jul. 2021. [9] ANVISA. Novas regras para antibióticos entram em vigor. Conselho Federal de Farmácia, 2010. Disponível em: <https://cff.org.br/noticia.php?id=577&titulo=Novas+regras+para+antibi%C3%B3ticos+entram+em+vigor >. Acesso em: 10 jul. 2021. [10] BRASIL. Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas. Fiocruz. Dados de intoxicação. 2021. Disponível em: < https://sinitox.icict.fiocruz.br/dados-nacionais> . Acesso em: 10 jul. 2021. [11] Luciana Barbosa. Blog da Saúde. Uso Racional de Medicamentos: riscos da automedicação. 2021. Disponível em: < http://blog.saude.mg.gov.br/2020/05/04/uso-racional-de-medicamentos-riscos-da-automedicacao/ >. Acesso em: 10 jul. 2021. [12] Igor Gadelha. Metrópoles. Conselho Federal de Medicina defende à CPI tratamento “off label”. 2021. Disponível em: < https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/conselho-federal-de-medicina-defende-tratamento-off-lable-a-cpi >. Acesso em: 10 jul. 2021 [13] Trecho extraído da live do dia 24 mar. 2021, minutagem 49:10. Disponível em: < https://youtu.be/spvxzjMNYbo >. Acesso em: 10 jul. 2021. [14] Melo, José Romério Rabelo et al. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cadernos de Saúde Pública [online]. v. 37, n. 4. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0102-311X00053221 >. Acesso em: 07 jul. 2021. [15] Iara Alvez; Krys Carneiro. G1. Infectologista relata complicações em pacientes por uso de medicamentos em ‘tratamento precoce’ contra Covid-19. Disponível em: <https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2021/01/20/infectologista-relata-complicacoes-em-pacientes-por-uso-de-medicamentos-em-tratamento-precoce-contra-covid-19.ghtml >. Acesso em: 14 jul. 2021.

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