FUTEBOL CONTEMPORÂNEO: A DESCARACTERIZAÇÃO DE UM ESPORTE.
- PET Economia UFES
- 10 de abr.
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O Escrete de Loucos
Garrincha apanha a bola e dispara. Já em plena corrida, vai driblando o inimigo. São cortes límpidos, exatos, fatais. E, de repente, estaca. Soa o riso da multidão — riso aberto, escancarado, quase despudorado. [...] Iluminado de molecagem, Garrincha tem nos pés uma bola encantada, ou melhor, uma bola amestrada. [...] O juiz russo espia o relógio. E o Brasil não precisa vencer um vencido. [...] Mas Garrincha levou até a última gota o seu “olé” solitário e formidável [...] que ateava gargalhadas por todo o estádio.
Nelson Rodrigues
Suspiros de arte cada vez mais raros no mundo da bola, o futebol, que nasceu plebeu e pertencia à classe trabalhadora, enaltecia o entusiasmo de um povo que, muita das vezes, se encontrava sob uma condição de plena angústia. Da rua ao campo, a expressão popular estava posta da maneira mais clara possível, a paixão, a alegria e a euforia, eram todas expelidas num só grito: Gol! Como enfatizado pelo poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, “futebol se joga na alma, [...] são voos de estátuas súbitas, desenhos feéricos, bailados de pés e troncos entrançados”. Toda a emoção achava-se exaltada, era a própria expressão do povo brasileiro.
Com o desenvolvimento das relações de produção capitalistas, o amor pelo futebol e toda a gama de afeto que o permeia perdeu seu caráter lúdico a partir do momento em que a esfera financeira, com suas mãos sujas de puro interesse lucrativo, apoderou-se desta forma de expressão popular, “transformando-a em um gigantesco objeto de consumo, que gera lucros incalculáveis”. Toda admiração pelo esporte que se dava no mundo das massas, com o avanço da esfera financeira, fora deturpada em prol de uma relação que não mais se baseava no puro apreço ao esporte, mas sim numa ótica que o vê enquanto um meio de lucratividade. Trata-se de um processo de mercantilização de um dos principais traços da cultura brasileira.
É nesse contexto que introduzimos a questão das Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) no Brasil, um dos setores em que o capital, na busca pela ampliação de suas bases, “passou a alcançar novos mercados e novas esferas em todo o mundo”(Chesnais, 1996). Nessa fase de internacionalização do capital, “o futebol ganha espaço no processo de acumulação capitalista e absorve novas configurações em escala global”, configurações essas que, em certa medida, acarretam uma mudança em sua função social, qual seja, a de ser uma mercadoria própria para o espetáculo, um “futebol-negócio”.
Desta maneira, observamos que o avanço da esfera financeira sobre o esporte brasileiro, trouxe um enfoque adverso ao que anteriormente era praticado, o futebol de identificação, que extrapolava a esfera esportiva por meio de influências no âmbito da sociedade, como na democracia corinthiana, vem cada vez mais se exaurindo, perdendo a razão de si. Nesse sentido, o “futebol moderno”, pautado pela introdução das SAFs, consegue cada vez mais galgar espaços no futebol brasileiro. “Com esse novo formato do capitalismo, o futebol se estabeleceu como um importante ativo para o capital financeiro, consolidando-se como produto da sociedade e modificando a realidade financeira do setor".
Nessa perspectiva, desde 2021, quando a Lei nº 14.193/21 (Lei das SAFs) foi sancionada, o domínio do capital financeiro que já era evidente antes mesmo da inserção das SAF´s, intensificou ainda mais o processo de financeirização, e o que já vinha se descolando das camadas mais populares da sociedade, agora toma um novo espectro ainda mais dissociativo, representando as Sociedade Anônimas de Futebol, se constituindo “do capital de indivíduos diretamente associados”. Assim, de acordo com um levantamento realizado pelo Globo Esporte (ge), 63 clubes brasileiros já aderiram ao modelo SAF. No referido relatório, as SAFs classificadas como as mais valiosas são, respectivamente: “Atlético-MG, Botafogo e Cruzeiro”, que juntas, mobilizam um capital de aproximadamente 6,716 bilhões de reais.
A enorme quantia de capital que adentra as SAFs e insere um número crescente de clubes neste processo, não possui outro interesse se não o do lucro futuro. Desponta-se dessa nova formatação, uma complexificação da relação do povo com a forma mercadoria do futebol. Estes, passam a defrontar-se com preços de ingressos a níveis abusivos, os quais, na condição de se encontrarem à margem da sociedade, vivendo sob condições degradantes a níveis de remunerações baixíssimas, e a quem o futebol deveria representar, tornam-se impossibilitados de viver a emoção do esporte que tanto amam. Os ingressos mais caros, usados como uma ferramenta de expropriação do lucro, inibem cada vez mais a paixão, a alegria e a euforia que costumavam ser expelidas num só grito.
Dadas as contradições que imperam no modo de produção capitalista, como um aspecto que compõe a realidade material, podemos observar que o processo do avanço financeiro para o futebol brasileiro, com a introdução das SAFs, pode acarretar na conquista de mais títulos, ou na compra de jogadores mais talentosos. Porém, coexistindo sob as bases de uma contradição inerente ao modo de produção vigente, é inevitável destacar que, ”submetidos à lógica de mercado, os jogadores transformam-se em mercadoria; os torcedores, em consumidores; o jogo, em um ativo financeiro e o futebol é visto como um grande negócio”. Assim, esfria-se a consciência da nossa historicidade como povo, com alma própria. Com isso, o nosso estilo de jogar deixa de ser inconfundível, ele perde parte do ar artístico que costumava possuir.
Nessa perspectiva, mesmo que as SAFs proporcionem cifras de remunerações maiores, estádios deslumbrantes, títulos e jogadores, ela vem de uma contrapartida mortal. As 63 Sociedades Anônimas de Futebol, e um número crescente de outros clubes que pretendem ser inseridos nessa dinâmica, matam o futebol de rua, o futebol do amor, e sobrelevam o futebol da casa de apostas, o futebol das ações com remunerações futuras, o futebol-negócio.
Com toda a capacidade de expropriação de lucro que o futebol moderno passa a possuir, dada à intensa lógica de mercado que se constitui em torno dele, os jogadores deixam de espelhar o futebol enquanto uma forma recreativa, de expressão da sua mais pura arte. Agora, o fundamento é outro, pois “a enxurrada de dinheiro foi tão grande que eles perderam o sentido de pertencimento e já não sabem mais a quem representam quando entram em campo, nem para quem jogam“. Deste modo, não há mais a possibilidade de observarmos um futebol mágico, de desenhos feéricos, como víamos em Garrincha, no ato de ser artístico, de levantar a multidão, de ser, de fato, a alegria do povo.
Outro aspecto das relações sociais que se modificaram com o avanço do capital financeiro sob as bases do futebol brasileiro, reside na forma com que as famílias passam a se relacionar com o esporte. As gigantescas remunerações que são destinadas aos jogadores, atrai um olhar adverso para o esporte, agora, ele passa a ser visto e almejado como uma forma de ascensão social. Deste modo, meninos que deveriam estar brincando são sufocados por expectativas irreais e, assim como destaca o técnico brasileiro, Fernando Diniz, ”Muitas vezes a família não incentiva o filho, mas sim, o pendura numa corda e o arrasta para o mundo do futebol. Aqui, ele não quer ser tratado como um jogador pelos pais, ele quer ser tratado como um filho, esta é uma distorção que machuca e acaba com a estima da criança”.
Nesse contexto, a financeirização do futebol atinge um novo patamar, crianças de 5 a 10 anos passam a ser vistas como uma mercadoria. As famílias colocam sobre elas um peso insustentável, e os clubes as tratam como investimentos em potencial, que podem trazer lucros futuros. Deste modo, mais uma vez a dinâmica da especulação financeira permeia e lança suas mãos, destruindo toda e qualquer relação que objetive buscar de volta o caráter lúdico do futebol que há muito se perdera.
O futebol está sem identidade, ou melhor, está com uma identidade que não lhe pertence, uma identidade que a ele foi imposta. Todo esse movimento, propositalmente, inibe uma série de relações que anteriormente eram o suprassumo da identificação brasileira. É triste observar que os movimentos de luta, que tinham no futebol um alicerce de suas crenças, agora, veem que seu esporte está perdido nas mãos daqueles que o odeiam ao descaracterizar suas origens, mas o amam, ao intensificar o processo de sua valorização, expropriando taxas gigantescas de lucro.
Agora, o jogo é formatado, torna-se meramente um jogo que, aos poucos, vai se esvaindo. Sócrates, precursor da democracia corinthiana que lutou, dentro dos gramados, contra a ditadura militar, enfatizou que, ”o título é efêmero. Amanhã começa outro campeonato [...]. O que vale mesmo é a paixão, independentemente de conquistas”. Assim, mesmo que as SAFs possam proporcionar ”benefícios”, o que vale, no fim, é a identificação, o amor, o grito de gol que permeia o futebol brasileiro, mas isto está cada vez mais ameaçado. Nesse emaranhado de deturpações que surgem no futebol brasileiro, concluímos que ”o futebol era nosso e agora é deles, que não o respeitam nem o querem, mas apenas usam-no em seu benefício e o esvaziam de sua identidade. Muitas vezes quiseram matá-lo – e outras tantas ele ressuscitou – mas parece que desta vez é sério”.
Rafael Barbosa Saldanha
João Henrique da Silva Nascimento
Também nos roubaram o futebol. Disponível em: Também nos roubaram o futebol | Revista Fórum. Acesso em: 15 mar. 2025.
Ibidem.
FREITAS E SILVA, Maria. Financeirização e investimento no futebol: um estudo sobre a penetração de capital nos clubes de primeira divisão do Brasil e da Inglaterra. 2024. 50 f. Bacharelado em Relações Internacionais – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2024.
Democracia Corinthiana. Disponível em: Democracia Corinthiana . Acesso em: 01 abr. 2025.
Ibidem.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro III: o processo global de produção capitalista. 1 Ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
A Mercantilização do Futebol e do Cinema. Disponível em: Mercantilização do Futebol e Cinema. Acesso em: 15 mar. 2025.
Ibidem.
Ibidem.
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