top of page
Foto do escritorPET Economia UFES

Soy parte de ti, América?


América Latina? Não! Brasileiro! Charge. 2009. Disponível em: <https://iberoamericasocial.com/la-ensenanza-de-lengua-espanola-en-brasil-historia-legislacion-resistencias/>. Acesso em 6 de abril 2021

Você já pensou em tirar suas próximas férias em Ushuaia, Bariloche ou em Mendoza, na Argentina? Que tal Santiago, no Chile, ou Assunção, no Paraguai? La Paz, na Bolívia? Quito ou o arquipélago de Galápagos, no Equador? Sabe onde fica Havana, Villa la Angostura ou Pucón? Conhece os cantores Bad Bunny, Luis Fonsi e Diego Torres? Já leu alguma obra do Pablo Neruda, Italo Calvino ou Jorge Luis Borges?


Apesar de tamanha proximidade geográfica, mal conhecemos os escritores, as artes, as músicas e dança dos países que, junto com o Brasil, compõem a América Latina. Pouco sabemos, também, sobre seus pontos turísticos, seus sistemas políticos, suas economias e cultura. E por que isso?


Os brasileiros, em geral, não se consideram latino-americanos. Uma pesquisa de opinião pública publicada no projeto The Americas and the world: Public Opinion and Foreign Policy (As Américas e o Mundo: Opinião Pública e Política Externa), na edição de 2014/2015, coordenada pelo Centro de Investigação e Docência em Economia (Cide) do México e aplicada no Brasil pelo Instituto de Relações Internacionais da USP (Universidade de São Paulo), obteve como resultado que apenas 4% dos brasileiros se definem como latino-americanos, ante uma média de 43% em outros seis países latinos que participaram do estudo (Argentina, Chile, Colômbia, Equador, México e Peru)[1].


Para os autores da pesquisa, os resultados comprovam o que historiadores e cientistas sociais já apontavam: “a autoidentificação do brasileiro é tênue e ambivalente, marcada pela percepção de pertencer a uma nação diferente dos vizinhos, seja pela experiência colonial, língua ou processo de independência distinto”[2]. Em síntese, as características destoantes entre as Américas, Hispânica e Portuguesa, se originam de suas respectivas colonizações e contribuem para a autoidentificação latino-americana, ou a falta dela.


Dito isso, e apesar dos fatores anteriormente citados também serem de suma importância para entender todo o processo de formação identitária dos povos latinos, há a necessidade também do entendimento por meio dos aspectos culturais desse distanciamento entre brasileiros e latino-americanos, a qual exploraremos a seguir.


O conceito de cultura é amplo e representa um conjunto de hábitos sociais, crenças, tradições e costumes de um povo ou de uma sociedade, e que são adquiridos pelo homem que é membro da mesma[3]. Assim, para se entender como parte de um grupo é necessário uma identificação, e um meio para isso é a cultura: o que se pensa, fala, lê, dança e canta. Contudo, é inegável que, dentro de um continente, cada espaço contém suas características antropológicas e históricas, e o mesmo acontece dentro de um país: a idiossincrasia[4] de um povo e suas inúmeras particularidades.


Em tempos modernos, um grande agregador à bagagem sociocultural dos brasileiros são os meios de comunicação. A mídia, seja ela digital ou televisiva, tem enorme influência na cultura de um país. No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2018, realizada pelo Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística (IBGE), sobre o Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018, informou que: a internet era utilizada em 79,1% dos domicílios brasileiros; 79,3% das pessoas tinham posse de telefone móvel celular para uso pessoal; e 96,4% domicílios particulares do país possuíam televisão[5]. Tais dados apontam que grande parte da população brasileira tem acesso às redes de comunicação, contudo, vale salientar que muito do que é consumido e que circula pelos rádios, jornais, internet e televisão são matérias de fácil absorção e entendimento, feitas e direcionadas ao grande público. Essa prática comum é conhecida como cultura de massa, nela, a indústria cultural mercantiliza variadas formas de expressão, como a dança, moda, esporte, música, etc, e através dos meios de comunicação tenta alcançar grande parcela da população, com fins fundamentalmente lucrativos[6].


Além disso, as redes direcionam o grande público as chamadas mainstream, que no português expressa um conceito que indica a tendência, um grupo, estilo ou movimento com características dominantes[7]. Um conteúdo mainstream é considerado comercial, assim como a cultura de massa, logo, obtém uma grande divulgação por parte da mídia. O jornalista e sociólogo Frédéric Martel é um dos grandes estudiosos sobre a cultura mainstream, e em seu livro “Mainstream - a Guerra Global das Mídias e das Culturas”, ele aprofunda o conceito e explora a batalha dos meios de comunicação pelo controle da informação, e como a internet potencializou essa cultura de forma espantosa.

Uma das problemáticas que abarcam tanto o mainstream quanto a cultura de massa é a homogeneização da população, já que a propagação de uma cultura dominante reproduz nas demais os moldes de como ser, o que vestir e o que gostar, sem considerar as individualidades e identidades de cada pessoa. Quando a hegemonia está instaurada, torna-se complicado a ascensão de algo novo, e isso implica diretamente no consumo da cultura de outros países latinos no Brasil.


Anualmente, o maior serviço de streaming musical do mundo, Spotify, publica uma lista com os 10 artistas mais ouvidos por países e pelo mundo. Em 2020, todos os 10 artistas mais ouvidos do Brasil são brasileiros, enquanto que o artista mais ouvido no mundo todo, o porto-riquenho Bad Bunny, nem sequer é mencionado no “top 10” do Brasil[8]. Visto isso, é notório que o Brasil se autoconsome musicalmente ao mesmo passo que, aparentemente, existe um bloqueio em relação ao consumo das músicas de outros países latinos. Segundo matéria publicada pela Folha de São Paulo em 2019, a música “Otro Trago”, do panamenho Sech, chegou à primeira colocação em 15 países da América Latina (que falam espanhol), mas jamais entrou no top 200 brasileiro[9]. Apesar da diferença linguística ser um fator, ela é mínima se comparada a influência da cultura de massa e do mainstream, principalmente quando se considera a dominância da língua e da cultura inglesa e norte-americana no Brasil, especialmente por meio da música, dos filmes e da moda.


Dessa forma, as relações de domínio também se configuram em outras artes, como na literatura e no cinema brasileiro. A Professora Sandra Reimão, Livre-docente da Universidade de São Paulo na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), analisou em seu artigo, “Tendências do mercado de livros no Brasil – um panorama e os best-sellers de ficção nacional (2000-2009)”[10], dados a respeito dos títulos produzidos e comercializados no Brasil naquele período. Os dados referentes a 2009 revelam que foram, ao todo, 52.509 títulos publicados, destes, 5.807 (11%) foram traduzidos da língua estrangeira, sendo o inglês o idioma com mais traduções, 3.699, e apenas 616 da língua espanhola. Contudo, mesmo correspondendo a apenas 11% dos títulos produzidos, eles representaram os 5 livros mais vendidos de ficção em 2009[11]. Não por acaso, em janeiro de 2021, o jornal Estadão liberou a lista dos livros mais vendidos no Brasil em 2020[12], e dentre os dez livros mais vendidos no país, nenhum era latino-americano e havia apenas um brasileiro, Thiago Nigro, criador do Canal Primo Rico, com o livro Do Mil ao Milhão. Novamente, posições de destaque no Brasil, tanto na literatura quanto no mercado cinematográfica, assim como na indústria musical, não são ocupados por latino-americanos.


O Brasil é um país com vasta história e nomes memoráveis no audiovisual, tendo, inclusive, já disputado o prêmio mais importante do cinema mundial algumas vezes, com chances reais de ganhar alguns dos principais, como o de melhor filme e melhor atriz, com Central do Brasil. A Agência Nacional de Cinema (ANCINE), por meio do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, publicou a Listagem de Filmes Brasileiros e Estrangeiros exibidos no Brasil de 2009 a 2019[13]. Os filmes produzidos pelos Estados Unidos ou com sua co-participação de outros países foram reproduzidos em 2.011.085 salas de cinemas, enquanto os brasileiros com ou sem co-participação internacional estiveram em 401.856 telas. No total de 2.596.002 cinemas, os filmes brasileiros foram transmitidos em apenas 15,47% das salas do país durante esses anos.


Analisando as formas como têm sido as relações de presença nos mercados culturais brasileiros, podemos nos questionar quanto às causas que levariam a essa disparidade da presença dos produtos de mídia norte-americano e europeu no mainstream em comparação com a presença da América Latina ou da própria Ásia.


O mundo globalizado[14], por mais que, em síntese, é entendido como uma ampla integração de conhecimento entre os povos, e que facilita o acesso a outras culturas, também é refém do Soft Power. O cientista político americano Joseph Nye cunhou o termo Soft Power (poder suave)[15], para se referir a característica de uma dominação de território por meio da língua, do esporte, da religião e da cultura em geral. Essa influência, apesar de moderada, leva o Brasil a consumir mais das grandes potências, e menos de outros países latinos, como os já citados anteriormente.


No cinema, na moda, na literatura e no idioma, o Brasil está mais próximo dos países que estão mais longe. Ainda falta muito para que todos os povos da América Latina se identifiquem latino-americanos. A essência desse entendimento se encontra na cultura, que por vezes não é valorizada tanto quanto deveria ser. Ao final, quando nos entendermos como um grande bloco, sentiremos como Gilberto Gil e José Carlos Capinan e então cantaremos: “Soy loco por ti, América. Soy loco por ti de amores”.


Camila Batista Caetano

Ray Ferreira.


Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.

[1]Brasileiro despreza identidade latina, mas quer liderança regional, aponta pesquisa. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/12/151217_brasil_latinos_tg> Acesso em: 06 de abril 2021. [2] Idem, Ibidem. [3] Cultura-Dicio. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/cultura/>. Acesso em 07 abril 2021. [4] Idiossincrasia: adjetivo próprio e particular de uma pessoa, grupo; Característico do comportamento, do modo de agir ou da sensibilidade de alguém. [5] IBGE. Uso de internet, televisão e celular no Brasil. 2019. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e-celular-no-brasil.html#:~: texto%20acesso%20 atrav%C3%A9s%20da%20 televis%C3%A3o,que%20 tinham% 20 acesso%20%C3%A0%20rede>. Acesso em: 08 abril 2021. [6] Cultura de Massa. 2019. Disponível em:<https://querobolsa.com.br/enem/sociologia/cultura-de-massa>. Acesso em: 08 abril 2021 [7] Mainstream. 2013. Disponível em: <https://www.significados.com.br/mainstream/#:~:text=Mainstream%20e%20Fr%C3%A9d%C3%A9ric%20Martel,fen%C3%B4menos%20relacionados%20com%20essa%20cultura> Acesso em: 12 abril 2021. [8] Spotify revela os mais ouvidos em 2020. 2021. Disponível em:<https://www.vagalume.com.br/news/2020/12/03/300.html>. Acesso em: 12 abril 2021. [9] O Brasil é o país mais isolado musicalmente do mundo. 2019. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/brasil-e-o-pais-mais-isolado-musicalmente-no-mundo.shtm> . Acesso em: 12 abril 2021 [10] REIMÃO, Sandra. Tendências do mercado de livros no Brasil- um panorama e os best-sellers de ficção nacional (2000-2009). Matrizes, São Paulo, Ano 5 - Nº1, p.194-210, jul/dez, 2011. [11] Os livros mais vendidos 2009. 2009. Disponível em: <https://www.brasilcultura.com.br/menu-de-navegacao/cultura/lista-dos-livros-mais-vendidos-2009/> Acesso em: 13 abril 2021 [12] Conheça os livros mais vendidos no Brasil em 2020. 2021. Disponível em:<https://cultura.estadao.com.br/blogs/babel/conheca-os-livros-mais-vendidos-no-brasil-em-2020/>.Acesso em: 13 abril 2021. [13] Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual. Disponível em: <https://oca.ancine.gov.br/cinema>. Acesso em: 14 de abril de 2021. [14] Globalização. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/globalizacao.htm>. Acesso em: 27 de abril de 2021. [15] ‘Soft power’ da cultura também é arma de países colonizados. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/05/soft-power-da-cultura-tambem-e-arma-de-paises-colonizados-diz-autor.shtml>. Acesso em 27 de abril de 2021.

382 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page