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Self-Made Man: a aparência da meritocracia

Self Made Man. Disponível em: https://www.reddit.com/r/wallpapers/comments/kkensr/self_made_man_3840x2160/?rdt=54609.  Acesso em: 18 abr. 2024.


A principal obra da escultora americana contemporânea Bobbie Carlyle é “Self-Made Man”, a qual retrata um homem esculpindo seu próprio corpo a partir de uma pedra bruta. Na base da imagem de bronze de 10 metros de altura, destaca-se uma inscrição que diz: “Homem se esculpindo em pedra, esculpindo seu caráter, esculpindo seu futuro” [1].  O título da escultura tem inspiração em uma fala do senador estadunidense Henry Clay, o qual afirmou, em um discurso no senado norte-americano em 1832, que os manufatureiros da época eram verdadeiros “self-made man”, ou seja, indivíduos cujo sucesso era consequência unicamente dos seus próprios esforços[2]. Desde então, o termo passou a ser associado ao empreendedorismo, sendo utilizado para se referir àquelas pessoas que, apesar da pobreza e das dificuldades, alcançaram grandes conquistas na vida com seus próprios esforços e que hoje podem ser consideradas “cases” de sucesso. 


Entre os maiores exemplos de “self-made man” contemporâneos, destacam-se nomes como Mark Zuckerberg (co-fundador do Facebook), Steve Jobs (fundador da Apple) e o apresentador televisivo Silvio Santos, sendo este o principal expoente desse arquétipo no Brasil. Essas e tantas outras histórias de superação fortalecem o pensamento meritocrático de que, independente da origem de cada pessoa, com trabalho duro e determinação é sempre possível chegar ao sucesso. Apesar de, em um primeiro momento, tal ideia aparentar ser motivadora e virtuosa, ela oculta uma série de fatores sócio-históricos e se mostra, mais profundamente, como fruto da própria lógica capitalista.


O discurso meritocrático, ao longo do processo histórico de avanço das forças produtivas, tomou diferentes formas, sendo reflexo da própria mudança estrutural do modo de produção e das novas formas de sujeição ao capital na sociedade. O modo de produção burguês, que se estabeleceu em solo norte-americano no fim do século XVIII, possibilitou a criação de uma nova classe de capitalistas, fruto de um processo de financeirização e centralização dos capitais[3]. No momento em que os Estados Unidos se alçaram ao posto de hegemon[4], após a Segunda Guerra Mundial, sua influência cultural e ideológica no mundo ocidental auxiliou na construção do novo arquétipo do homem bem-sucedido[5]. Sob a hegemonia estadunidense, a personificação do “homem de sucesso” passou do simples pioneiro fabril para o tecnocrata, representante da classe financeira e empresarial de Wall Street. Sendo assim, o aclamado “sonho americano” foi amplamente difundido, corporificado na figura do self-made man e adaptado à forma da acumulação de capital neste momento histórico[6].


Após a crise dos anos 1960/70, a narrativa neoliberal tomou os holofotes do debate econômico decorrente das mudanças daquele período, em que se esgotaram as formas de acumulação de capital que garantiram os aclamados "anos dourados do capitalismo ocidental". Assim, a dinâmica do mercado auto-regulador e eficiente proporcionou uma alteração no status quo de funcionamento do modo de produção, causando mudanças consideráveis na forma de vida, de socialização e de interpretação da realidade social. Esse processo deu origem, então, a um novo sujeito que emergia nessa sociedade, um ser autônomo, isolado, "formado na lógica do desempenho e gozo” [7].


A fase atual do self-made man é marcada pelo indivíduo atomizado e empreendedor de si mesmo, sendo não mais a imagem do trabalhador braçal, mas do vendedor de si e de sua ideia como um produto: a expertise. O discurso permeia a forma de reprodução da vida material na fase neoliberal do capital, tendo em mente que é causado pelo acirramento da divisão do trabalho, ou seja, da necessidade de colocar-se sempre à frente no mercado laboral como mão de obra mais qualificada.


É preciso notar que a lógica meritocrática, amplamente difundida na sociedade, aparece, em primeiro momento, como algo natural. No entanto, em uma análise mais aprofundada das relações sociais que compõem o modo de produção em que vivemos, é possível observar que tal apelo é, ao nosso ver, uma condição específica do capitalismo e necessária para justificar a subjugação do trabalho ao capital[8], principalmente na contemporaneidade. Tal processo foi acentuado no momento da transição do Estado de bem-estar social para o capitalismo neoliberal, a partir do início da década de 1970, a qual lançou os indivíduos em sua forma atomizada, dado o desmantelamento da proteção social.  É notável a presença de tais discursos no cotidiano, visto que estes desempenham papel fundamental na forma de reprodução do capital e, portanto, no modo de vida na sociedade burguesa.


Certamente, um dos principais malefícios da figura do self-made man nos dias atuais é a justificação, e até mesmo a naturalização, da desigualdade. Afinal, se o sucesso e a riqueza são proporcionais aos esforços pessoais, a diferença entre ricos e pobres torna-se que os primeiros trabalharam mais que os últimos. Assim, o êxito de exceções, como os já citados Mark Zuckerberg e Silvio Santos, é tomado como regra e cria-se uma utopia em que todos os indivíduos podem ficar ricos apenas com trabalho duro, e que se ainda não o são, é porque não se esforçaram o suficiente. Fica, então, o questionamento: se 60% da população brasileira, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ainda vive com até um salário mínimo[9], seria o Brasil um país de preguiçosos? Estariam essas milhões de pessoas trabalhando pouco?


À vista disso, o historiador e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Sidney Chalhoub, ao tratar das críticas relativas à inclusão das cotas étnico-raciais no vestibular da Unicamp, afirmou que “a meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade” [10]. Quando ocultamos as infindáveis variáveis materiais que influenciam o êxito dos indivíduos e resumimos todo o sucesso à esfera comportamental, cria-se, então, uma ideologia que serve apenas para culpabilizar os pobres e justificar a riqueza dos ricos. 


Assim, o discurso meritocrático permeia as relações sociais e banaliza a solidariedade, alimentando o próprio modo de produção com a suposta possibilidade de ascensão social a partir do esforço individual. Quando não há mais a exposição clara da dicotomia entre capital e trabalho, o próprio indivíduo e sua ideia se confundem, de forma que o cidadão dá lugar a um “empreendedor” em tempo integral. Conclui-se, então, que na verdade a meritocracia difundida no cotidiano normatiza e sistematiza a exploração e a desigualdade, frutos do próprio modo de produção.


O elemento contraditório nos revela que, por mais que o indivíduo se esforce, sem as pré-condições necessárias ele não será capaz de modificar a sua realidade. O Steve Jobs não poderia ter criado a sua linha de smartphones sem o maciço investimento estatal nas redes de tecnologia e informação, bem como o Silvio Santos jamais poderia ter ascendido ao posto de expoente televisivo sem o mesmo. Assim, por trás das ascensões sociais estão uma série de mudanças estruturais, qualitativas e sociais que diferenciam cada processo histórico, sendo o empenho individual apenas mais um componente desse emaranhado de fatores. Podemos objetivar, portanto, que o discurso meritocrático é, em sua essência, um processo alienante, visto que nem o maior self-made man poderia ter se construído sozinho.


Henrique dos Anjos Moura

Kayky Barcelos de Oliveira

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[1] MUTUALART. MutualArt. Bobbie Carlyle, Biografia. Disponível em: https://www.mutualart.com/Artist/Bobbie-Carlyle/B4C3CA2353F52D27/Biography. Acesso em: 18 abr. 2024.

[2] FEIGHT, ANDREW. Treber Inn, Henry Clay & the “self-made man” on Old Zane’s Trace. Scioto Historical. Disponível em: https://sciotohistorical.org/items/show/39?tour=7&index=9. Acesso em: 18 abr. 2024.

[3] OLIVEIRA, Carlos de. O Capitalismo Atrasado. In: O Processo de Industrialização - Do Capitalismo Originário ao Atrasado. Repositório UNICAMP, 1985. p. 165-254.

[4]  Termo original do Latim, empregado por David Harvey em “O Novo Imperialismo” para simbolizar o país “líder” ou "hegemônico”.

[5] CASTELLANO, Mayka; BAKKER, Bruna. Renovações do self-made man: meritocracia e empreendedorismo nos filmes “À procura da felicidade” e “A rede social”. Ciberlegenda, p. 32-43, abril 2015.

[6]  HARVEY, David. Como o poder Norte-Americano se expandiu. In: O Novo Imperialismo. Edições Loyola, 2004. p. 31-76.

[7] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. O Homem Empresarial. In: A Nova Razão do Mundo. Boitempo, 2016. p. 133-156.

[8]  SILVA, Ederson Duda da. A meritocracia como modo de vida: uma análise crítica à luz da tradição marxista. Sociologias Plurais, v. 9, n. 1, p. 33-62, 2023.

[9] CARNEIRO, Luciane. 60% dos brasileiros vivem com até 1 salário mínimo por mês. Globo, Valor Investe. Rio de Janeiro, 06 de dezembro de 2023. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2023/12/06/60percent-dos-brasileiros-vivem-com-ate-1-salario-minimo-por-mes.ghtml>. Acesso em: 18 abr. 2024.

[10]  FILHO, Manuel Alves. "A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub". Jornal da UNICAMP. Campinas, 07 de junho de 2017. Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2017/06/07/meritocracia-e-um-mito-que-alimenta-desigualdades-diz-sidney-chalhoub>. Acesso em: 18 abr. 2024.

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