Presidiário segurando a Declaração Universal dos Direitos Humanos no Carandiru. Disponível em: Desde o massacre do Carandiru, presídios só pioraram. Acesso em: 24 abr de 2024.
A Vida É Desafio
Racionais MC's, Afro-X
Sempre fui sonhador, é isso que me mantém vivo
Quando pivete, meu sonho era ser jogador de futebol
Vai vendo!
[...]
Porém o capitalismo me obrigou a ser bem sucedido
Acredito que o sonho de todo pobre, é ser rico
Em busca do meu sonho de consumo
Procurei dar uma solução rápida e fácil pros meus problemas: o crime
De acordo com o levantamento da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), o número de encarcerados no sistema prisional brasileiro, em junho de 2023, era de 644,7 mil em celas físicas e 190,1 mil em prisões domiciliares, somando um total de 834,8 mil indivíduos privados de liberdade [1]. Esse número mostra um crescimento de 44% da população carcerária nos últimos 10 anos, visto que em dezembro de 2013, o quantitativo de detentos era de 581,5 mil. É interessante notar que a alta desse índice no Brasil coincide com o aprofundamento das políticas neoliberais.
Segundo o psicanalista e filósofo, Vladimir Safatle, um dos critérios que diferem o neoliberalismo do liberalismo clássico é que o primeiro não busca realizar um cálculo de prazer com o mínimo de desprazer, todavia utiliza do sofrimento humano para extrair mais produção econômica [2]. Desse modo, tendo em vista o aumento da população carcerária no Brasil, pode-se afirmar que o setor que gere o sofrimento nos presídios se mostrou um mercado potencialmente lucrativo para a implementação de empresas privadas, algo que já ocorreu em outros países, em especial nos EUA.
Esse modelo de política neoliberal foi implementado no governo de Ronald Reagan, quando este foi presidente entre 1981 e 1989, empregando inúmeras reformas, sendo uma delas no sistema carcerário. A primeira prisão privada nos EUA foi construída em 1984 e, desde então, a indústria do encarceramento movimenta cerca de US$5 bilhões a cada ano [3]. Na última década, o setor privado relacionado aos presídios nos EUA não deixou de lucrar, recebendo incentivos fiscais, aporte do mercado financeiro e dando manutenção às condições precárias dos detentos, como menor quantidade de guardas, serviços de saúde piores em comparação aos relatados aos fiscais estaduais, comida estragada e com larvas, além de problemas com o transporte dos detentos, em que casos de abusos sexuais foram relatados [4]. Cabe, assim, ponderar o questionamento: há espaço para a busca desenfreada pelo lucro em um setor que deveria ser concebido para ressocialização dos indivíduos?
Para o governo Lula-Alckmin [5], a resposta da pergunta acima é afirmativa, haja vista que, no ano passado, o atual Governo Federal revogou o Decreto n° 8.874/2016, do governo de Michel Temer que não considerava como prioridade das parcerias público-privadas (PPPs) a atuação sob os presídios [6]. Porém, após a modificação efetuada pelo governo, com o aval do Ministro da Fazenda Fernando Haddad, o novo decreto passou a incluir as penitenciárias como uma das prioridades no processo de privatização. O documento, inclusive, autoriza a emissão de debêntures (títulos de dívida que geram um direito de crédito ao investidor), para permitir que empresas adquiram capital no mercado financeiro para a construção de presídios [7].
Em sequência à nova deliberação do governo, foi noticiado que um presídio em Erechim (RS), após um leilão na B3 (Bolsa de Valores de São Paulo), passou por um processo de privatização no qual a empresa receberá, por meio da parceria público-privada, cerca de R$233 por dia para cada indivíduo preso [8]. Nesse sentido, cabe observar que quanto mais presos a corporação mantiver dentro das casas de detenção, maior será o seu lucro.
Dentro desse contexto, a política de privatização dos presídios não está colocada como um fato histórico isolado, sendo ela parte de um vasto conjunto de reformas neoliberais que acometem o Estado brasileiro desde o início dos anos de 1990, sendo condicionante para a dominação do capital internacional. Para a professora do departamento de economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Marisa Amaral, o avanço do neoliberalismo e a inserção das economias periféricas na lógica mundial de acumulação capitalista corroborou para o aprofundamento da dependência existente nos países da América Latina, em um contexto de nova fase do imperialismo [9]. Cabe, dessa maneira, observar que a política de esvaziamento do campo de influência do Estado, visando o avanço do capital financeiro, é um projeto que independe da política econômica aplicada, seja ela ortodoxa ou heterodoxa. Além disso, a financeirização da economia tem como uma das suas faces a política de austeridade fiscal, possivelmente a mais sensível para a população vulnerabilizada.
Nesse âmbito, é preciso destacar, com preocupação, as possíveis consequências desse avanço da política neoliberal, sobre o setor penitenciário, para os grupos que mais sofrem com essas medidas: a população negra, jovem e periférica. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) relatou que, em 2005, os negros representavam cerca de 58,4% da população carcerária, enquanto brancos eram 39,8%. Em 2022, a população carcerária negra chegou a 67,5%, enquanto a de brancos, caiu para 30,4%. A população negra vivendo em cárcere aumentou em 381,3%, bem superior se comparada com a de presos brancos, que aumentou em 215% [10]. Sendo assim, no Brasil, se prende cada vez mais, porém, cada vez mais pessoas negras. Portanto, é possível inferir que há uma forte desigualdade racial no sistema prisional, que se expõe não somente nos dados apresentados, mas também no cotidiano das ações do sistema punitivo, que é base da reprodução capitalista. Com isso, os incentivos à privatização tenderão a elevar as taxas de encarceramento e aprofundar as precariedades do sistema, tornando os corpos negros e criminalizados, que compõem o alvo preferencial do sistema punitivo, fonte de lucro à iniciativa privada.
Contrário a essa medida, o Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, afirmou que “a privatização, seja de presídio, seja do sistema socioeducativo, abre espaço para infiltração do crime organizado”, pelo fato de ampliar o número de jovens periféricos entrando num sistema carcerário precarizado e corrompido. Segundo o Ministro, essa medida não tornou os presídios melhores em lugar nenhum no mundo e há uma tendência de se tornar uma política de privatização da execução penal, na qual uma empresa cuidará dos deveres dos presos [11].
Enxergando o potencial destrutivo das PPPs, o doutor em economia, Paulo Kliass, reiterou que “a transformação de presídios em objeto de acumulação de capital coloca o encarceramento como elemento fundamental para a obtenção de receitas pelo investidor em busca de seu lucro”[12]. Medidas de corte de gastos públicos encaminham setores estratégicos, entre eles o sistema carcerário, para o domínio do investimento privado, onde as privatizações tornam-se uma das principais formas de angariamento de recursos para o Estado. À vista disso, cabe ressaltar que a privatização dos presídios não é, de forma alguma, uma possibilidade de resolução dos problemas do sistema carcerário. Enfrentar as privatizações é enfrentar a política neoliberal e esta só poderá ser derrotada com um projeto político que verdadeiramente tenha caráter de mudança estrutural e que atenda aos interesses populares.
Gustavo Gomes de Almeida
João Henrique Nascimento
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[1] SECRETARIA NACIONAL DE POLÍTICAS PENAIS. SENAPPEN lança Levantamento de Informações Penitenciárias referentes ao primeiro semestre de 2023. 2023. Disponível em: SENAPPEN lança Levantamento de Informações Penitenciárias referentes ao primeiro semestre de 2023 Acesso em: 24 abr. 2024
[2] SAFATLE, V. A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral. In: SAFATLE, V; SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
[3] Nos EUA, penitenciárias privadas estão lucrando mesmo com a queda de detentos. Poder 360, 2019. Nos EUA, penitenciárias privadas estão lucrando mesmo com a queda de detentos. Acesso em 24 abr. 2024.
[4] CARVALHO, Luísa. População carcerária cresce nos EUA e no Brasil. Poder 360, 2024. Disponível em: População carcerária cresce nos EUA e no Brasil. Acesso em: 24 abr. 2024.
[5] Termo utilizado para descrever o governo vigente na presidência (2023-2026).
[6] GILBERTO, João. MACEDO, Leonardo. “Privatização dos presídios aumentará o lucro dos ricos”. A Verdade, 2024. Disponível em: Privatização dos presídios aumentará lucro dos ricos - A Verdade. Acesso em: 22 abr. 2024.
[7] AMOROZO, Marcos. “Privatização de presídios abre espaço para crime organizado”, diz Silvio Almeida sobre o decreto das PPIs. CNN Brasil, 2024. Disponível em: “Privatização de presídios abre espaço para o crime organizado”, diz Silvio Almeida sobre decreto de PPIs | CNN Brasil. Acesso em: 22 abr. 2024.
[8] COELHO, Rodrigo. Cadeia privatizada: empresa ganhará R$233 por preso por dia no Rio Grande do Sul. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: Cadeia privatizada: empresa ganhará R$ 233 por preso por dia no Rio Grande do Sul. Acesso em: 22 abr. 2024.
[9] AMARAL, M. S. Teorias do imperialismo e da dependência: a atualização necessária ante a financeirização do capitalismo. Tese de Doutorado apresentada à FEA-USP, São Paulo, 2012.
[10] LUCENA, André. População negra encarcerada chega ao maior nível da série histórica. Carta Capital, 2023. Disponível em: População negra encarcerada chega ao maior nível da série histórica – Sociedade – CartaCapital. Acesso em: 22 abr. 2024.
[11] AMOROZO, Marcos. “Privatização de presídios abre espaço para crime organizado”, diz Silvio Almeida sobre o decreto das PPIs. CNN Brasil, 2024. Disponível em: “Privatização de presídios abre espaço para o crime organizado”, diz Silvio Almeida sobre decreto de PPIs | CNN Brasil. Acesso em: 22 abr. 2024.
[12] KLIASS, Paulo. PPPs: A armadilha que o governo montou para si. Outras Palavras, 2023. Disponível em: PPPs: A armadilha que o governo montou para si. Acesso em: 24 abr. 2024
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