Empresários de Artur Nogueira terão palestra gratuita para maximizar seus resultados. Disponível em: https://correionogueirense.com.br/empresarios-de-artur-nogueira-terao-palestra-gratuita-para-maximizar-seus-resultados-correio-nogueirense/. Acesso em: 18 nov. 2024.
Em um de seus romances, Jorge Amado narra a história de um grupo de viajantes que, a bordo de um navio, percorrem a costa baiana. Movidos por um sonho de riqueza e libertação da miséria, jovens esperançosos, indivíduos famélicos e idosos resignados dirigem-se a Ilhéus para o trabalho no plantio de cacau. Durante a travessia, uma lua vermelha como o sangue desponta no horizonte, erguendo-se como um presságio. Ela anuncia, em contraste cruel com a ilusão vendida, o destino que os espera: a exploração, o trabalho extenuante e, frequentemente, a morte.
Da tragédia à farsa, a história revela, quase um século depois, que o labor exaustivo segue sendo negociado em troca do desejo por prosperidade. Dentro desse contexto, o coaching emerge como um dos principais instrumentos para a perpetuação e o aprofundamento dessa dinâmica.
Nesse sentido, o coaching é uma prática conduzida por um indivíduo, o coach, que se apresenta como um orientador especializado em ajudar pessoas a alcançarem os seus objetivos pessoais e profissionais. Por meio de métodos que prometem alinhar a mentalidade do cliente aos seus objetivos, ele enfatiza a importância de desenvolver competências, superar crenças limitantes e criar hábitos que otimizem resultados em áreas como carreira, saúde, finanças e relacionamentos. Desse modo, a transformação pessoal é tratada como um processo individual de maximização, em que disciplina, foco e autogestão são vistos como fundamentais para alcançar resultados positivos. Embora frequentemente realizado em empresas por meio de palestras para seus funcionários, o coaching também é contratado por indivíduos que, muitas vezes, buscam de forma urgente melhorar sua condição financeira.
Essa prática tem se configurado como um dos principais instrumentos para a intensificação do grau e da eficácia da exploração do trabalhador. Introduzido no Brasil na década de 1970 e popularizado nos anos 2010¹ em sua atual forma, o coaching insere-se no contexto histórico do neoliberalismo. Tal período é uma expressão contemporânea do capitalismo que, indo além do liberalismo clássico, não apenas prega a palavra da mão invisível do mercado e do individualismo, mas também estende suas garras da dinâmica empresarial e da concorrência às entranhas de todas as áreas da vida humana, impondo uma lógica parasitária que submete cada aspecto da existência às suas normas, como se a própria vida devesse ser governada pela obsessão da competição e da eficiência.
Assim, se na história de Jorge Amado era necessário garantir, após as promessas iniciais de riqueza, a presença de um capataz para manter coercitivamente os trabalhadores em suas jornadas de exploração, hoje o trabalhador torna-se o seu próprio capataz. Ele obriga-se a si mesmo a continuar plantando cacau em meio à miséria, não por temer as consequências físicas ou o risco de uma miséria ainda maior, mas porque, inserido em um mundo cada vez mais competitivo, acredita que, para prosperar, basta apenas mais foco, disciplina e eficiência, transferindo para si toda a culpa por seu atual estado de penúria.²
A esse indivíduo, os pesquisadores franceses Dardot e Laval nomeiam “neossujeito”. Trata-se da figura do ser humano como um ser empresarial, cujo desejo pela prosperidade é capturado em função da legitimação de uma conduta que, diante de um cenário de supressão cada vez mais intensa dos direitos trabalhistas, baseia-se na constante competição entre os indivíduos, razão pela qual este deve sempre procurar ser mais produtivo e maximizar os seus resultados, mesmo que para isso ele assuma riscos e responsabilize-se inteiramente por eles. Como dissera Margareth Thatcher, "A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma".³
Essas técnicas de sujeição, no entanto, por mais novas e eficazes que sejam, têm o mesmo objetivo desde os primórdios do capitalismo: transformar o trabalhador em uma mera mercadoria à disposição da acumulação de capital. Dessa forma, com o seu coração e a sua alma já conquistados, o neossujeito torna-se apto a submeter-se a um mercado de trabalho incerto e a ocupações precárias e exploratórias sem realizar qualquer contestação mas, pelo contrário, cobrar-se e, em caso de eventual fracasso, responsabilizar-se.⁴
Desse modo, essa subjetivação expande-se no cenário brasileiro junto às mudanças no mercado de trabalho. Esse discurso ganhou cada vez mais espaço a partir das políticas de redução de direitos trabalhistas características do neoliberalismo, como a Reforma Trabalhista de 2017, que, buscando uma pretensa autonomia para os trabalhadores, criou novas categorias instáveis de ocupação, como o trabalho intermitente. Na esteira de um crescimento desse tipo de ocupação, como Pessoas Jurídicas (PJs), Microempreendedores Individuais (MEIs), freelancers e autônomos, nos últimos sete anos, potencializam-se os conteúdos coach e motivacionais nas redes sociais, principalmente no Instagram, os quais têm promovido cada vez mais os “benefícios” de um empreendedorismo informal.
Os dados, entretanto, contestam tais aspectos positivos. Segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV), sete em cada dez trabalhadores informais no Brasil gostariam de ter carteira assinada. E mais: 44% dos autônomos recebem no máximo um salário mínimo, sendo a sua maioria negros.⁵ Nesse contexto, percebe-se que trabalho árduo ou mudanças no mindset não atendem às reais necessidades dos brasileiros precarizados, sendo o coaching apenas um mecanismo de legitimação da sua labuta e de manutenção da sua passividade diante desse cenário.
Além disso, uma das consequências mais perniciosas dessa forma de subjetivação é o adoecimento mental da sociedade. Uma soft skill sempre muito explorada pelos coachs é a chamada “inteligência emocional”, discurso esse que, disfarçado de resiliência, busca a instrumentalização dos sentimentos e a mobilização das emoções e relações em prol da produtividade. Essa dedicação integral (física, mental e emocional) para atingir a maior eficiência exaure e deprime os sujeitos, pois, como dito pelos autores, “a depressão é, na verdade, o outro lado do desempenho”.⁶ O sujeito neoliberal, cego pela lógica contábil, vê seu mundo ruir diante da realidade do fracasso e da insuficiência, e como se não fosse o bastante, ainda se vê atormentado pelos discursos de que deve trabalhar mais ou comprar algum outro curso na internet. O resultado é que, ao se submeterem às falácias daqueles homens-empresa “bem-sucedidos”, lança-se mão da experiência acumulada ao longo de suas vidas para emular o sucesso de outros por meio de estratégias mais imediatamente rentáveis, o que contribui para o que Dardot e Laval chamam de corrosão da personalidade.
Apesar de tantos malefícios, o coaching não para de se popularizar no país, com a eleição de 2024 para a prefeitura de São Paulo sendo um claro indicativo desse fenômeno. Em uma disputa acirradíssima, o coach Pablo Marçal recebeu mais de 1,7 milhões de votos, e por pouco não disputou o segundo turno na cidade mais economicamente importante da América Latina.⁷ Sua campanha foi recheada de falas sobre “mentalidade empreendedora” e superação, as quais ganharam ressonância em uma sociedade marcada pela desigualdade e composta por indivíduos ávidos por ascensão social. Antes mesmo da eleição, Marçal já registrava milhões de visualizações no Instagram e no TikTok, sendo apenas um entre tantos outros que têm conseguido sucesso nesse ramo.
Tais coachs se utilizam da prerrogativa neoliberal de que cada indivíduo é um empreendedor em potencial⁸, incrementando seu discurso também com princípios religiosos e apelos emocionais a fim de impactar as massas. Carentes de alternativas, os brasileiros e brasileiras do outro lado da tela abraçam o neossujeito e se inserem nesse ciclo sem fim de produtividade e fracasso.
Diante desse cenário perverso, no entanto, não basta apenas recusar a lógica do neossujeito por meio da renúncia à autogestão e à concorrência com o outro. Conforme já se apontava em A Ideologia Alemã, as “ideias dominantes não são nada mais que a expressão ideal das relações materiais dominantes”⁹, indicando que o neossujeito não surge ou desaparece apenas pelas dinâmicas dos micropoderes, ou, simplesmente, por qualquer vontade individual, mas pela manutenção ou pela ruptura das grandes estruturas materiais que moldam tais sujeitos. Sem isso, permanecerá a exploração sobre os modernos plantadores de cacau.
Gabriel Matheus Ferreira Santos
Henrique dos Anjos Moura
Referências
VALDEMIR, Gabriel. Coaching: Surgimento e origem. Instituto Comprática, [s.d.]. Disponível em: https://n9.cl/afpu5. Acesso em: 22 nov. 2024.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. O homem empresarial. In: _______. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 133- 156.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A fábrica do sujeito neoliberal. In: _______. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 321- 376.
Ibidem.
Reforma trabalhista: informalidade, autônomos e CLT, a luta por carteira assinada. UOL Economia, Disponível em: https://n9.cl/lscn4. Acesso em: 23 nov. 2024.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A fábrica do sujeito neoliberal. In: _______. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 321- 376.
Diferença de cerca de 55 mil votos deixa Pablo Marçal fora do segundo turno. CNN Brasil, 2024. Disponível em: https://n9.cl/sl27z. Acesso em: 23 nov. 2024
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. O homem empresarial. In: _______. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 133- 156.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas, 1845-1846. São Paulo: Boitempo, 2007.
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