top of page
Foto do escritorPET Economia UFES

No era depresión, era capitalismo

Atualizado: 15 de mar. de 2022


Por Nona Fernández Silanes, escritora [1] .



Tradução de "Leader of a New Regime", de Lorde

Passando FPS 3000 por causa dos raios ultravioleta Consegui chegar à ilha no último dos aviões de ida Tenho um porta-malas cheio de Simone e Celine e, claro, minhas revistas Eu vou viver meus dias pra valer

Ninguém, ninguém mesmo, vai ser líder de um novo regime?

Liberte os guardiões do cenário de esgotamento psicológico

Mais um dia

Desejo e paranoia reinam com supremacia

Precisamos do líder de um novo regime



Comentário PET


A cantora e compositora neozelandesa, Lorde, em seu mais recente álbum, Solar Power, apresenta músicas que conversam com um futuro antiutópico - a descrição crítica de uma sociedade futura que segue os padrões autodestrutivos atuais. Em especial, a música Leader of a New Regime passa a mensagem de uma ex-popstar indo a um dos poucos paraísos restantes em um um mundo marcado por crises e, logo em seguida, clamando por um líder que irá consertar o caos instaurado em uma sociedade decadente em questões climáticas, psicológicas e econômicas.


O conceito apresentado por Lorde, não vive apenas em sua melancólica melodia: ele é extremamente real e observado há séculos. Porém, seu constante agravamento se iniciou na década 1980, quando o mundo começou a tomar os rumos ditados pela sociedade Neoliberal. Sociedade essa que é pautada na generalização da concorrência - individualismo - e na autogestão, em que as linhas entre o trabalho e o lazer se tornam cada dia mais tênues, em conjunto das constantes crises econômicas que o sistema capitalista sofre, e claro, não se pode desconsiderar a pandemia da covid-19, que no momento de escrita desta resenha caminha para seu terceiro ano. Os motivos anteriormente citados provavelmente corroboraram para a frase “Não era depressão, era capitalismo” aparecer em uma das paredes da capital chilena, Santiago, que foi palco de uma série de manifestações no ano de 2019, que expressaram a insatisfação popular com a ordem social vigente e as heranças estruturais da ditadura militar que o país viveu, na década de 1970 a 1990. Como resultado, a população obteve a aprovação de uma assembleia para redigir a constituição do país[2].


A pressão mental para obtenção de dinheiro e alcance à melhores condições de vida não têm sua gênese na década de 1980 aliás, desde sempre no capitalismo as populações mais pobres e proletárias vivem em situações que desafiam as estruturas mentais. Friedrich Engels, em 1885, publicou estudos de como a população inglesa pobre e trabalhadora vivia em condições desumanas como caracteriza o autor, ao dizer: “Submete-os às mais violentas emoções, às mais bruscas oscilações entre medo e esperança e persegue-os como a uma caça, não lhes concedendo nunca um pouco de paz e de tranquilidade”[3]. Entretanto, o neoliberalismo trouxe consigo novas ferramentas que usam do sofrimento - que não é de hoje - a seu favor.


O capitalismo descobriu que o sofrimento pode ser uma ferramenta a fim de gerar mais lucros, como exemplo nos anos de 1970[4], em que telefonistas trabalhavam até seus limites físicos e mentais pelo medo de perder o emprego e, quando finalmente “quebravam” eram substituídas por novas trabalhadoras. Em resumo, temos aqui um problema de saúde mental e econômico, um agravando o outro. Mas, quem será o “líder de um novo regime” clamado por Lorde, que finalmente irá resolver as crises e caos de uma sociedade que caminha em seu atual presente caótico?


Que poder teriam psiquiatras e psicólogos por meio de acompanhamento e, em alguns casos, tratamento medicamentoso, para resolver um problema de grande influência econômica? Já que o paciente sofre com constantes preocupações, como por exemplo, se o emprego no amanhã ainda estará garantido ou se será possível pagar as contas mensais. Ou o líder será economista? Apenas acompanhando os dados macro e microeconômicos e as taxas de juros que afetam a sociedade no dia a dia e pensar: “A mão invisível vai dar conta disso tudo, confie!”? E quem sabe o general vai ser um coach? Profissão vastamente proliferada, que promete o mundo e um pouco mais, nos últimos tempos, sendo generalizada até no âmbito econômico. Antes de expormos mais opiniões sobre tais indagações, precisamos entender um pouco mais sobre o que as geraram.


O livro “Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico” organizado pelo filósofo Vladimir Safatle e os psicólogos Nelson da Silva Junior e Christian Dunker, apresenta um estudo que foca no governo do ditador chileno Augusto Pinochet e a subsequente globalização do neoliberalismo como projeto político e econômico em países como Inglaterra e Estados Unidos. O neoliberalismo não se trata apenas de uma política macroeconômica; ele também se configura em um sistema que leva a uma sensação constante de sofrimento. Com desigualdades cada vez mais acentuadas e lutas diárias incessantes por condições de vida básicas, como consequência, acaba por gerar nas pessoas um sentimento de cansaço e, mais ainda, um imenso sentimento de culpa, pois é postulado a ideia e a crença que o “eu” é o único e total responsável pelos sucessos e fracassos durante a vida. A lógica da meritocracia parece imperar cada vez mais sobre seus súditos.


Ao colocar enorme ênfase no poder que indivíduos têm por si sós de crescerem na vida, se apaga completamente fatores individuais, particulares e sociais de cada pessoa; desconsidera-se completamente a região onde se cresceu, os níveis mensais de renda, níveis educacionais e outras externalidades que influenciam o desenvolvimento e as oportunidades de cada ao decorrer da vida. A sociedade neoliberal aumentou ainda mais o abismo entre as classes sociais e as oportunidades que cada um possui, mas isso é varrido para debaixo dos tapetes, colocando na mente da população um lema de vida, em que se precisa dar tudo de si para estudar e trabalhar e finalmente ser considerado “alguém”. Ser bem-sucedido se tornou sinônimo de ser rico. Ser rico se tornou sinônimo de felicidade. E esta felicidade é propagada como dependente apenas do próprio indivíduo.


Michel Foucault, francês e grande filósofo do século XX, entre seus estudos falou sobre o “discurso” como forma de poder[5], e como ele é propagado nos mais variados canais de comunicação. Mensagens imperativas como: “tem que ser, tem que fazer, tem que gostar disso, tem que rejeitar aquilo”, por consequência, acabam gerando, em quem as recebe, um desconforto interno. Afinal, se a sociedade neoliberal diz para você ter um bom desempenho na carreira e uma vida financeira estável, ela por outro lado não torna esse caminho viável.


Surge então uma outra pandemia, a qual não é viral, mas sim mental: a depressão, que, de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde, atinge cerca de 300 milhões de pessoas[6], além da ansiedade e o stress que acompanham de perto os diagnosticados com a doença. Quando as pessoas se veem cheias de contas a pagar, uma carreira que requer uma constante performance e cobranças, é quase impossível manter a saúde mental em dia.


Em seu livro “Sociedade do cansaço” Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, na tentativa de sintetizar o que é a sociedade contemporânea, compara dois tipos de sociedade: a sociedade disciplinar e a sociedade do desempenho. Han afirma que, na sociedade do desempenho, algumas doenças são mais características do que outras, devido à constante cobrança para execução e pressão social, são exemplos delas: depressão, TDAH e síndrome de Burnout. A depressão na sociedade do desempenho é um esgotamento mental quando há uma exigência de ser feliz, produtivo e saudável, através de uma positividade difícil de ser mantida em um meio exaustivo e desgastante, tanto mentalmente quanto fisicamente.


O que marca a sociedade contemporânea é o positivo, o “sim”, o que se “afirma”, ao contrário da sociedade disciplinar, que foi marcada pela negatividade, o não. A positividade não altera só o modo de lidar com o outro, mas interfere na existência individual: ao invés de uma sociedade do controle, com a existência de uma autoridade externa exigindo um dever, agora há uma sociedade do desempenho, depositando no indivíduo a sua própria gestão e o poder ilimitado para sua ação. O indivíduo é chamado a todo momento para agir, produzir, exercer sua positividade frente aos outros, sua existência acima de tudo, e ele faz isso de modo multitarefa - gerenciando várias coisas ao mesmo tempo. A atenção, característica da sociedade disciplinar, não será mais profunda, mas superficial, rápida e rasa. O fato de sermos chamados à atividade a todo momento faz com que se desenvolva uma reação hiperativa, assim, todo esse novo cenário resulta em exaustão; um cansaço crônico que aflige na própria constituição do ser - o afirmar ser, para ser de verdade.


Se temos então um problema estrutural, que envolve desde empregadores, políticos e até o próprio sistema capitalista, qual o poder que os futuros e atuais psicólogos e economistas têm para amparar uma população à margem de dívidas e doenças mentais? Infelizmente a resposta não é um manual de regras e ritos e, muito menos, uma tarefa simples. Exercícios físicos, yoga, terapia e, em certos casos, tratamento medicamentoso, não resolvem ou pagam contas em atraso ou retomam um emprego perdido, mas não podemos desconsiderar tais opções e o papel dos profissionais que as exercem, já que sua vocação nunca foi para resolver tais problemas, mas sim ajudar a lidar com os traumas e doenças mentais causados. Já para os economistas, a tarefa é um pouco mais difícil; falar de planejamento financeiro é um assunto delicado quando se tem uma vida sem segurança e garantia em relação à renda e ao próprio emprego, mas também não podemos tirar o mérito de manter as finanças organizadas. Quanto à atuação profissional para controlar impactos à população acerca de altas taxas de inflação e altos custos de vida, infelizmente não depende exclusivamente de um graduado em Ciências Econômicas, e sim do governo e um conjunto de políticas públicas atreladas a instituições que visam o bem-estar populacional; mas, principalmente, o peso maior deve recair sobre o papel governamental para lidar com as crises que afetam a população geral, seja por meio de amparos de renda (como programas via transferência ou criação de postos de trabalho de qualidade), seja na promoção e aprimoramento do SUS. No papel é interessante, mas infelizmente, não é o que vemos no atual Brasil - um assunto que demandaria outra resenha econômica para citar cada problema e comentar os passos necessários para uma possível boa atuação.


Ademais, nos últimos anos vimos virar moda a “onda coach”, mas para a clamação de Lorde, eles mais atrapalham do que ajudam. Antes, o termo coach se referia apenas a treinadores de esportes, porém, recentemente ganhou um sentido mais amplo, sendo relacionado a várias áreas do conhecimento. Em números, a atividade cresceu aproximadamente 300% no Brasil em quatro anos, segundo a International Coaching Federation (ICF), e o número de brasileiros com formação na área passou de sete mil em 2012 para vinte e cinco mil em 2015[7].


O problema é que na sociedade do desempenho, citada anteriormente, em que o ideal se resume nas escolhas individuais acerca de investimentos, empreendimentos e o “eu” incansavelmente tentando superar a si mesmo, implementar práticas questionáveis que colocam em risco várias pessoas e ignorar todos os aspectos exteriores que influenciam na vida do indivíduo se torna cruel e desumano.


A exemplo do que ocorreu recentemente em São Paulo[8], onde um coach e um grupo de pessoas precisaram ser resgatados de uma montanha pelo corpo de bombeiros, por conta das condições climáticas extremamente perigosas que o grupo se encontrava.


Infelizmente, não é de se estranhar como as pessoas tanto se queixam de culpa e auto-recriminação da constante ansiedade diante dos seus desejos, por se verem distantes de seus ideais. O próprio sistema planta a semente que germina tais cobranças. Comportamentos compulsivos e obsessivos estão cada vez mais normalizados, sobretudo no ambiente corporativo, e a saúde mental das pessoas deve ser analisada e considerada por aqueles que acreditam na importância das pressões e influências externas sofridas pelo indivíduo, e não por aqueles que se orientam apenas pela máxima "você quer, você pode".

Alexandra Rayssa Nascimento Ribeiro Daniel de Almeida Bahiense


Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.




[1]El Periodista Online. Nona Fernández: No era depresión era capitalismo. Disponível em: <https://www.elperiodista.cl/2019/10/nona-fernandez-no-era-depresion-era-capitalismo/> Acesso em: 28 de jan. de 2022.


[2] Istoé. Chile comemora 2º aniversário de manifestação histórica em Santiago. Disponível em:


[3] A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4662435/mod_resource/content/1/ENGELS.pdf>. Acesso em: 19 de jan. de 2022.


[4] Depressão e suicídio a serviço do capitalismo - CUT - Central Única dos Trabalhadores. Disponível em: <https://www.cut.org.br/noticias/depressao-e-suicidio-a-servico-do-capitalismo-572f>. Acesso em: 19 de jan. de 2022.


[5]Isabella Maria Nunes Ferreirinha e Tânia Regina Raitz. As relações de poder em Michel Foucault: reflexões teóricas. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rap/a/r3mTrDmrWdBYKZC8CnwDDtq/?format=pdf&lang=pt> Acesso em: 19 de jan. de 2022.


[6] OPAS/OMS. Depressão. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/topicos/depressao>. Acesso em: 19 de jan. de 2022.


[7] Beco Literário. A obsessão na moda do “coaching”. Disponível em: <https://becoliterario.com/obsessao-na-moda-do-coaching/>. Acesso em: 17 de jan. de 2022.


[8] G1. Coach que colocou em perigo 32 pessoas no Pico dos Marins, em SP, afirma que 'quem não quer correr risco fica em casa vendo stories'. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2022/01/07/coach-que-colocou-em-perigo-32-pessoas-no-pico-dos-marins-em-sp-afirma-que-quem-nao-quer-correr-risco-fica-em-casa-vendo-stories.ghtml>. Acesso em: 27 de jan. de 2022.








574 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page