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Mobilidade ou caos urbano no Brasil?


CONTAS Abertas. Como anda o Plano de Mobilidade Urbana de Salvador? CAU Bahia, 2015.Disponível em: https://abrir.link/Lf0dQ. Acesso em: 05 set. 2023.

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São 17 horas, sexta-feira. O trânsito está intenso. Observo pelo vidro do ônibus o congestionamento e sinto o cheiro do combustível queimando. Na calçada, pedestres e ciclistas precisam dividir o mesmo espaço. Dentro do ônibus, os rostos cansados, muitos estão em pé, o calor é sufocante. Isso soou familiar? O que será que ajuda a entender o “caos urbano” que grande parte dos brasileiros, sobretudo das grandes cidades, enfrentam diariamente?


As cenas retratadas nessa realidade hipotética (mas não fictícia) são reflexos dos problemas da mobilidade urbana do país. Segundo o Projeto Movimenta [1], do Ministério Público da Bahia, a mobilidade urbana refere-se às condições que permitem o deslocamento de pessoas. Geralmente, é associada com meios de transporte, porém, engloba toda infraestrutura para que pessoas e cargas possam se deslocar. Logo, é fundamental no estabelecimento de relações sociais, pois promove a interação entre os indivíduos, além de possibilitar o acesso a serviços básicos, como saúde.


Por muito tempo, o planejamento da mobilidade urbana esteve apenas atrelado ao trânsito de veículos automotores. No caso brasileiro, as discussões associando o deslocamento urbano com a equidade[2] só se intensificaram com a Constituição de 1988, que instituiu a necessidade de reformas nos espaços urbanos. Contudo, foi em 2012, com o Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que a expressão “transporte urbano” foi alterada para “mobilidade urbana”[3]. Apesar da mudança na nomenclatura, o foco das políticas é ainda, em grande medida, voltado para o transporte individual motorizado.


No plano atual, com a Medida Provisória nº 1.175/2023[4], o governo Lula lançou um programa de desconto patrocinado para compra de veículos sustentáveis. Entre os objetivos, está a renovação da frota de ônibus. No entanto, do custo total de R$1,8 bilhão[5], cerca de 45% foram destinados a automóveis, enquanto apenas 17% foram para veículos de transporte de passageiros. Isto é, apesar da proposta interessante, o programa reforça uma mobilidade mais voltada ao transporte privado motorizado.


Essa tendência, de aumento do transporte individual em detrimento do transporte coletivo, já era observada desde a década de 1980, como apontam Rafael Pereira e outros pesquisadores em um texto do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea)[6]. Para os autores, subsídios a combustíveis, isenções no financiamento de veículos e estacionamentos gratuitos são exemplos de políticas públicas de uma mobilidade urbana centrada no transporte individual.


Essas ações governamentais acabam favorecendo um aumento desenfreado de veículos, o que impacta as cidades. Conforme o Anuário da Confederação Nacional do Transporte (CNT)[7], na comparação de 2021 com 2011, houve um aumento de 58% na frota de veículos e, do total registrado, automóveis e motocicletas somavam 75,4%. As tentativas para atenuar a situação caótica de muitas cidades, por vezes, acabam se mostrando como forma de adaptação a uma realidade insustentável. Congestionamentos, acidentes e ampliação da poluição estão cada vez mais presentes nas cidades do país.


Vale destacar que o problema não é estimular que uma parcela maior da população tenha acesso ao carro próprio, mas pensar a mobilidade urbana apenas em termos do transporte individual motorizado. Com base na Pesquisa Mobilidade Urbana 2022[8], da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas, os engarrafamentos são consequência da falta de planejamento adequado, sendo uma das manifestações mais evidentes dos problemas da mobilidade urbana. Os dados do estudo mostram que os brasileiros gastam, em média, 21 dias por ano no trânsito. Esse cenário resulta em perdas significativas de tempo e de produtividade para os indivíduos, degradando a qualidade de vida.


Essa falta de planejamento urbano, como sinalização e faixas exclusivas, também favorece a ocorrência de acidentes, o que impacta no próprio gasto público. Para Júlia Maria D’Andrea Greve[9], do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, os acidentes de trânsito envolvem alta complexidade e um dispêndio elevado de recursos. Além disso, segundo o psiquiatra Elson Asevedo[10], a rotina estressante do trânsito gera impactos gravíssimos à saúde mental.


O meio ambiente também tem sido impactado pelo estímulo ao consumo individual automotivo. Conforme o relatório do Balanço Energético Nacional[11], em 2022, o setor de transportes foi o maior emissor de CO2, sendo este um dos principais gases responsáveis pelo aquecimento global. Além disso, também contribui no desenvolvimento de doenças respiratórias. Assim, essa lógica de deslocamento urbano favorece a degradação ambiental e gera impactos à saúde humana.


Para mais, uma mobilidade urbana voltada ao transporte individual é também uma forma de exclusão social. De acordo com a Pesquisa Mobilidade Urbana 2022, 55% das pessoas pertencentes às classes C, D e E não possuem veículos individuais, tornando-as dependentes do transporte coletivo. Ao priorizar veículos automotores privados, aqueles que não possuem condições de adquiri-los tem outros direitos afetados pela dificuldade de acessar os espaços urbanos.


Uma das alternativas possíveis para os desafios complexos da mobilidade seriam os transportes coletivos. Ao reunir um grande número de passageiros em um único veículo, como ônibus ou metrôs, eles diminuem o tráfego de carros particulares e, consequentemente, os engarrafamentos. Além disso, também são mais sustentáveis ambientalmente, com muitos sistemas adotando tecnologias mais limpas. Do mesmo modo, tendem a ser mais acessíveis financeiramente, favorecendo a inclusão social. Portanto, priorizar os investimentos em transporte coletivo parece ser a abordagem mais sensata para enfrentar os desafios urbanos. No entanto, conforme o relatório do Instituto de Estudos Socioeconômicos[12], de 2019 a 2022, houve uma redução de 65% nos investimentos destinados a esse setor.


Outra alternativa interessante são as bicicletas. Por terem custos de aquisição e manutenção baixos, quando comparados com outros meios de deslocamento, são uma forma de democratizar o acesso às cidades. Além disso, ocupam pouco espaço e não emitem poluentes. Contudo, em 2018, segundo o relatório do Sistema de Informações da Mobilidade Urbana[13], apenas 3% das viagens foram com bicicletas. Logo, para ampliar seu uso, tornam-se necessários uma série de investimentos, como ciclovias, bicicletários e sinalização. Porém, para Janio Santos, docente da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e Luiz Eduardo Santos, mestrando na mesma instituição, as mudanças na condução das políticas públicas vêm sendo feitas de forma lenta no país[14].


A mobilidade urbana vai além de possibilitar o deslocamento dos indivíduos. Ela deve ser pensada como forma de obter a equidade social, sendo fundamental para que as pessoas acessem direitos assegurados na própria Constituição. Voltar o planejamento público para o transporte individual automotivo, além dos problemas ambientais e econômicos, é um meio de exclusão social. Da forma como vem sendo conduzida, a organização urbana tem sido, na verdade, um caos urbano que beneficia apenas uma parcela da população em detrimento das demais.


Bruna Cavati Rossi

Júlia Paulino Rocon


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REFERÊNCIAS:

[1] Projeto Movimenta. Mobilidade urbana. Ministério Público da Bahia. Disponível em: https://abrir.link/QAigK. Acesso em: 30 ago. 2023.

[2] Equidade é uma forma de tratar de modo desigual aqueles que estão em posições sociais desiguais.

[3] SILVA, André da. Mobilidade urbana e equidade social: possibilidades a partir das recentes políticas de transporte público na Metrópole do Rio de Janeiro. Revista de Geografia e Ordenamento do Território, [online], n. 10, p. 293 - 317, 2016. Disponível em: https://abre.ai/gPng. Acesso em: 10 set. 2023.

[4] BRASIL. Medida Provisória nº 1.175, de 5 de junho de 2023. Diário Oficial da União, Brasília, 6 jul. 2023. Seção 1, p. 6. Disponível em: https://abrir.link/Zz1ZP. Acesso em: 30 ago. 2023.

[5] DESCONTO patrocinado na compra de veículos sustentáveis. Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, ago. 2023. Disponível em: https://abrir.link/bRN8n. Acesso em: 27 ago. 2023;

[6] Pereira, Rafael H. M. et al. Tendências e desigualdades da mobilidade urbana no Brasil I: o uso do transporte coletivo e individual. Texto para Discussão, Ipea, n. 2673, 2023; Disponível em: https://abre.ai/gPnl. Acesso em: 11 set. 2023.

[7] CNT. Anuário CNT do transporte 2022. Disponível em: https://abrir.link/1UL4n. Acesso em: 04 set. 2023.

[8] REDAÇÃO. População dos grandes centros perde em média 21 dias/ano no trânsito. Monitor mercantil. Disponível em: https://urx1.com/7cX5r. Acesso em: 07 set. 2023.

[9] REDAÇÃO. Acidentes de trânsito no Brasil, um problema de saúde pública. Jornal da USP, 2022. Disponível em: https://abrir.link/uuwy4. Acesso em: 25 ago. 2023.

[10] ASEVEDO, Elson. O impacto do trânsito na saúde mental. Veja, 2023. Disponível em: https://abrir.link/H9ejY. Acesso em: 27 ago. 2023.

[11] EPE. Balanço Energético Nacional (BEN) 2023: ano base 2022. Brasília: Ministério de Minas e Energia, 2023. Disponível em: https://encurtador.com.br/dqNRW. Acesso em: 05 set. 2023.

[12] DEPOIS do desmonte: balanço do orçamento geral da União 2022. Inesc, Brasília, 2023. Disponível em: https://abrir.link/3WPzJ. Acesso em: 28 ago. 2023.

[13] Sistema de Informações da Mobilidade Urbana: relatório geral 2018. Associação Nacional de Transportes Público, 2020. Disponível em: https://abrir.link/n7fy4. Acesso em: 20 set. 2023.

[14] SANTOS, Janio Laurentino de Jesus; SANTOS, Luiz Eduardo Pereira Ferreira dos. Planejamento e mobilidade urbana no Brasil: o uso da bicicleta como uma nova maneira de pensar e construir a cidade. Rev. Dir. Cid., Rio de Janeiro, v. 14, n. 1., p. 113-137, 2022. Disponível em: https://abre.ai/gPnG. Acesso em: 15 set. 2023.



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