PETERS, Renato. Charge: Fraude na 'Lei Rouanet'. G1, 2016. Disponível em: <http://glo.bo/3yMMBU2>. Acesso em: 10 maio 2022.
O termo “cultura” foi empregado inicialmente para designar uma parcela de terra que viria a ser cultivada ou lavrada. Entretanto, com o passar dos anos, o termo adquiriu nova conotação, passando a representar uma rede de compartilhamento de símbolos, significados e valores de um grupo ou sociedade[1]. Assim, a cultura adquire o sentido de aperfeiçoamento de uma competência, capacidade ou vertente intelectual, e com isso denota um conjunto de estruturas sociais, religiosas, intelectuais e artísticas manifestadas por determinado grupo.
Nesse sentido, a cultura de um povo não reflete apenas a contemporaneidade, mas também seu processo histórico de formação. Tal fato não é diferente no Brasil, que em suas manifestações culturais, marcadas pela grande miscigenação, incorpora suas mazelas e lutas, desigualdades e conquistas, e expressa a conjuntura social da época. Logo, tendo em vista a importância econômica e social que representa, a temática fez parte, sob diferentes abordagens, das distintas Constituições brasileiras. De forma análoga, a atual Carta Magna assegura o direito à cultura, de modo a consolidar o termo “patrimônio cultural”. Com isso, é de responsabilidade do Estado executar políticas públicas de modo a garantir o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional a todos os cidadãos, com vista a apoiar, difundir e valorizar essas manifestações[2].
Para além da função social que desempenha, a importância do setor cultural se expande para a economia. No ano de 2020, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC)[3], este setor correspondia a 5,6% do total de ocupados, isto é, 4,8 milhões de pessoas. Entretanto, nos últimos anos, sobretudo no governo Bolsonaro, as políticas públicas voltadas à cultura passaram a sofrer crescente desmonte. Logo no início de sua gestão, em 2019, houve a extinção do Ministério da Cultura, passando este a compor uma Secretaria Especial vinculada ao Ministério da Cidadania. Além disso, tem ocorrido de forma implícita um desmonte na Agência Nacional de Cinema (Ancine), criminalizando artistas e gestores; a obstrução de recursos a projetos já aprovados e a manipulação ideológica para o financiamento de outros. Recentemente, o Presidente da República também vetou importantes projetos para a comunidade artística, como a Lei Paulo Gustavo[4]. Estes fatos conduzem à conclusão de que “estamos vivendo o desmonte total das instituições da Cultura”, como afirmou Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora da USP[5].
Entre os alvos de maior ofensiva pelo governo, e também o que gera maior preocupação devido à sua importância nacional, está a Lei Rouanet. A Lei Federal de Incentivo à Cultura (nº 8.313/1991), como é conhecida, foi sancionada em 1991, e tem como um de seus principais propósitos apoiar iniciativas artísticas e culturais, sendo um dos mecanismos de fomento à cultura mais importantes do Brasil e um verdadeiro marco para o setor. Com base nela, artistas, produtores e instituições, como museus, podem buscar recursos financeiros no setor privado, em troca de um abatimento no imposto de renda[6].
Para obter acesso aos benefícios desse dispositivo legal, os interessados devem inscrever seu projeto no Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), em que deve apresentar, entre outras informações, a contrapartida que oferece para o público. A aprovação, até 2021, era feita pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), com representantes do meio artístico, sociedade civil, empresariado e Estado, o que assegurava maior imparcialidade e competência para as decisões. Contudo, desde abril daquele ano, esta comissão está desativada devido ao fim do mandato de seus integrantes, cabendo a deliberação ao secretário nacional de incentivo e fomento à cultura[7]. Tal fato é extremamente grave, tendo em vista que a aprovação de todos os projetos vinculados à essa Lei dependem de um único indivíduo, o que, além de tornar o processo mais longo, acaba por atribuir um caráter ideológico às decisões. Em outubro de 2021 foi divulgado um edital para convocação de membros para compor esta comissão, porém, até o presente momento, não há nenhum resultado divulgado, embora o mesmo estivesse previsto para novembro.
Para mais, apesar de diversas publicações midiáticas demonstrando as fragilidades desta Lei, e o quanto ela se volta às grandes produções, é inegável os benefícios desta normativa para sociedade. De fato, locais como o Museu de Artes de São Paulo (MASP) e a Mostra Internacional de Cinema, ambos com um público pagante bem considerável, já foram contemplados por esta normativa. No entanto, uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV)[8], em 2018, mostrou que 90% dos projetos aprovados eram de pequeno porte, sendo mais da metade de até R$25 mil. Para mais, seu impacto reverbera em mais de 60 atividades dentro do setor produtivo. Entre 1993 e 2018 a Lei movimentou quase R$50 bilhões, sendo R$31 bilhões diretamente, por meio das doações ou dos patrocínios, e R$18,5 bilhões indiretamente, devido a movimentação que gera em sua interligação com outros setores. Assim, ao invés de retirar fundos da economia, essa Lei, na verdade, tem mostrado que retorna recursos para a população. O estudo da FGV comprovou que para cada R$1,00 investido, há um retorno de R$1,59 para a sociedade.
Apesar destes dados, o Decreto nº 10.755/2021, publicado no Diário Oficial da União, diminuiu o teto de captação em diversas áreas, em que desfiles, exposições literárias e festivais tiveram metade do orçamento suprimido. Cachês para artistas e modelos solo foram reduzidos em 93,4%. O limite para aluguel de espaços foi limitado à R$10 mil, o que apesar de parecer muito, inviabiliza a realização de eventos maiores e que poderiam atingir a um público maior. Este documento também proíbe que uma empresa aporte, por mais de dois anos, recursos para um mesmo projeto, o que, se por um lado, parece possibilitar que mais ações sejam contempladas pela Lei, por outro, dificulta a realização de um planejamento de médio/longo prazo por parte de produtores, impedindo que muitos planos sequer saiam do papel. Segundo Sydney Sanches, presidente da Comissão Nacional de Direitos Autorais da OAB (Organização dos Advogados do Brasil), ao invés de tornar a Rouanet mais justa e acessível, estas mudanças acabam por restringir a circulação de cultura de boa qualidade e inviabilizam grandes empreendimentos[9].
Além disso, em termos gerais, dados de 2020 do Sistema de Informações e Indicadores Culturais (SIIC)[10], do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram, em um consolidado de onze anos, que apesar do aumento em termos absolutos dos gastos públicos no setor cultural, houve, em termos relativos, em relação ao total das despesas públicas, redução nos gastos empreendidos à cultura. Isto se repetiu para todas as esferas do governo: Federal, Estadual e Municipal.
Dessa forma, o desmonte da Lei Rouanet, bem como de outras políticas públicas voltadas à cultura, não deve ser visto como prejudicial apenas aos artistas e produtores interessados, mas sim a toda sociedade. Uma Lei que possibilite à população, sobretudo aos que carecem, lamentavelmente, de recursos básicos para sobreviver, possa acessar a eventos como shows, exposições de arte, museus e discussões literárias, é democrática e tem papel de transformação social.
As políticas públicas precisam manter a pluralidade de visões e o compromisso com a vida. Não se pode aceitar que o Estado negligencie a garantia da plena cidadania. O objetivo orgânico de fortalecer, criar e reciclar o fomento à cultura que a Lei Rouanet estabelece é uma das necessidades de todos os segmentos da sociedade. O povo, de modo geral, precisa mesmo que não saiba, pois como já dizia o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil: “o povo sabe o que quer mas o povo também quer aquilo que não sabe”.
Afonso Dantas
Bruna Cavati
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
[1]CULTURA. Significados. Disponível em: <https://bit.ly/38G64uO>. Acesso em: 14 maio 2022. [2]BEZERRA, Ricardo. A cultura na Constituição Federal. Disponível em: <https://bit.ly/3sIlmGg>. Acesso em: 14 maio 2022. [3]SIIC 2009-2020: setor cultural ocupava 4,8 milhões de trabalhadores em 2020. IBGE, 2021. Disponível em: <https://bit.ly/37VsM1K>. Acesso em: 10 maio 2022. [4]CABELLO, Camila Faustinoni. A insurgência da cultura. In:. CONCEIÇÃO, Jefferson José da. Carta de conjuntura da USCS. 20ª carta. São Paulo: CONJUSCS, 2021, p. 139 - 141. Disponível em: <https://bit.ly/3a2LHIF>. Acesso em: 06 maio 2022. [5]ROLLEMBERG, Marcello. A cultura como alvo. Jornal da USP, 2019. Disponível em: <https://bit.ly/3LrN8NG>. Acesso em: 14 maio 2022. [6]AMADO, Miguel. Lei Rouanet: o que é, como funciona e mitos. FIA Business School, 2019. Disponível em: <https://bit.ly/37VpAmK>. Acesso em: 05 maio 2022. [7]LEI Rouanet: Entenda como funciona lei e o que mudou nos últimos meses. G1, 2021. Disponível em: <http://glo.bo/3MrdlgJ>. Acesso em: 11 maio 2022. [8]DEARO, Guilherme. Lei Rouanet traz retorno 59% maior que valor financiado, mostra FGV. Exame, 2018. Disponível em: <https://bit.ly/38G5Jbw>. Acesso em: 05 maio 2022. [9]CUNHA, Gustavo. Mudanças na Lei Rouanet serão analisadas pelo STF, em ação movida pela OAB. O Globo, 2022. Disponível em: <http://glo.bo/3PvH6Pq>. Acesso em: 10 maio 2022. [10]IBGE. Sistema de Informações e Indicadores Culturais 2009 - 2020. Estudos e pesquisas - informação demográfica e socioeconômica, n 45, 2021. Disponível em: < https://bit.ly/3Lsdn6R>. Acesso em: 10 maio 2022.
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