Sentimento de ódio ou aversão às mulheres. Estas expressões remetem ao significado do termo misoginia. Essa concepção pauta-se na lógica sexista de que as mulheres devem estar em uma posição social inferior à dos homens. Apesar da temática ter adquirido maior visibilidade com discursos que vêm se expandindo nos meios virtuais, não é novidade. A cultura patriarcal e a divisão sexual do trabalho estão enraizadas no país, realimentando tais práticas e sentimentos.
Apesar da persistência de discursos deslegitimizando as reivindicações femininas, afirmando que são injustificadas, a misoginia está diretamente relacionada a atos de violência. Com base em informações da plataforma “Violência contra as mulheres em dados”, do Instituto Patrícia Galvão, em 2022, 29% das brasileiras foram vítimas de alguma forma de violência. Destas, a maioria tinha entre 16 e 34 anos, eram negras e tinham filhos. Além disso, a maior parte das agressões vieram de pessoas com quem as vítimas tiveram algum relacionamento afetivo.
Redes sociais virtuais também têm sido bastante utilizadas para a propagação de discursos de ódio contra as mulheres. Com base na Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos da Safernet, a misoginia esteve na terceira posição em relação ao aumento de denúncias. Entre 2021 e 2022, o crescimento foi de 251%. Para Luiz Valério Trindade, autor do livro “Discurso de ódio nas redes sociais”, discursos contra parcelas minorizadas da população, como as mulheres, se potencializam nos meios virtuais pelo (pseudo)anonimato. O autor complementa que mulheres negras, jovens e em ascensão social são as mais vulneráveis a esses atos de violência. Com o agravante da supervalorização da branquitude, proliferam-se atos discriminatórios que buscam inferiorizar as mulheres, sobretudo negras, no que consideram ser “seu devido local na sociedade”.
Muitos dos promotores dessas narrativas integram os denominados chans. Estes são grupos estruturados nos meios virtuais, alguns da deep web, e que não precisam de identificação. Contudo, uma parte expressiva dos discursos são propagados na internet aberta, inclusive tendo a publicação de vídeos, postagens e até livros. Esses grupos são parte do movimento masculinista. Este, além de criticar as pautas feministas, na busca pela equidade de gênero, dissemina o ódio às mulheres em diversos graus. O movimento apresenta os homens como vítimas, em que a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio e a pensão alimentícia, por exemplo, são considerados privilégios concedidos às mulheres. Esse tipo de discurso desconsidera todo o processo histórico e dados científicos sobre as condições díspares em que homens e mulheres estão inseridos na organização social.
Contudo, esse movimento não é homogêneo. Para Sara Stopazzolli, jornalista especializada em violência doméstica, o principal movimento no Brasil é o Men Going Their Own (MGTOW, traduzido como “homens seguindo seu próprio caminho”). Os princípios básicos do MGTOW são: não casar, coabitar ou engravidar uma mulher. A jornalista ainda explica que os integrantes costumam usar termos como blue pill (“pílula azul”) e red pill (“pílula vermelha”) para se referir ao estado de adormecimento dos homens, indo da ilusão ao esclarecimento, respectivamente.
Os termos fazem alusão ao filme Matrix. No longa-metragem, a pílula vermelha proporciona ao protagonista a compreensão da realidade, enquanto a pílula azul representa um estado de adormecimento. A expressão red pill foi popularizada por uma vertente do movimento masculinista que se autodenomina “sigmas”, cuja principal característica é ir contra a “dominação da sociedade moderna". Eles acreditam que o sistema favorece as mulheres, e elas os manipulam para controlá-los. Esses homens se consideram líderes natos e tendem a apresentar um comportamento antissocial, pois, segundo eles, escolheram trilhar um caminho mais solitário. Eles se julgam superiores às mulheres e só as toleram para relações sem vínculo afetivo.
Na internet, os sigmas empregam o emoji de uma escultura Moai, da Ilha de Páscoa, segurando uma taça de vinho. Para eles, esses monumentos apresentam traços masculinos a serem cultuados, como a mandíbula bem torneada e o queixo protuberante. Além disso, a bebida traz a ideia de apreciar os prazeres da vida sozinhos. Costumam associar à imagem a expressão “fino señores” para se referirem a “conversas de alto nível intelectual” entre homens. Para ter dimensão do movimento, a hashtag #sigma já alcançou mais de 44 bilhões de visualizações no mundo, apenas no Tik Tok. No entanto, vale ressaltar que há pessoas que utilizam esse emoji apenas como meme, sem relação com atos misóginos.
A propagação de conteúdos misóginos também tem sido veiculada por influenciadores, em que muitos se auto-intitulam coaches desses grupos. Eles disseminam discursos misóginos para milhares de seguidores, a maioria jovens, que compartilham uma lista de exigências ao se relacionarem com mulheres, as red flags femininas. O termo, traduzido como “alerta vermelho”, é utilizado para expressar características que as mulheres não podem ter, como: filho, ex-namorado, usar roupas curtas, ter algum problema com o pai ou faixa etária acima dos trinta anos. Em contrapartida, quanto mais velho o homem for, melhor, já que terá maior chance de ser bem-sucedido financeiramente.
Outro grupo são os incels (celibatários involuntários), que culpabilizam as mulheres por não terem relações amorosas. Embora pareçam discursos inofensivos, esses grupos masculinistas podem estimular sentimentos de ódio que se manifestam em ações reais. Um exemplo foi em 2018, quando um homem canadense atropelou e matou 10 pessoas em Toronto, no Canadá. Pouco antes do atentado, ele havia publicado uma mensagem que o associava ao grupo incel.
Conforme Bruna Amato, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Jéssica Janine B. Fuchs, mestra em Psicologia Social pela UFSC, há uma relação entre a ascensão de grupos masculinistas e a extrema direita. Para as autoras, os grupos masculinistas não são um movimento isolado, mas fazem parte da busca por uma sociedade cisheteronormativa, com a qual o governo Bolsonaro se identificava. Mesmo que não integrem diretamente a extrema direita, contribuem para disseminar seus discursos. Para as autoras, a masculinidade hegemônica acaba sendo um elo comum a diferentes grupos sociais.
Essa ofensiva contra as mulheres já era evidente com o impeachment contra Dilma Rousseff. Além do conteúdo de classe em sua deposição, houve um nítido aspecto de gênero. Com base em Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, isso esteve relacionado ao avanço do protagonismo feminino, visto como ameaça. Na votação, diversos deputados discursaram usando expressões sexistas. Inclusive, o ex-presidente, e então deputado, Jair Bolsonaro, homenageou um torturador de Dilma durante a Ditadura Militar. A eleição e falas do ex-presidente Bolsonaro contribuíram para disseminar atos misóginos, como se passassem a ter legitimidade.
Pensar em como mudar essa realidade é algo complexo. São estruturas historicamente estabelecidas, reforçadas por grupos masculinistas e a própria extrema direita. Contudo, as estruturas sociais não são estáticas e podem/devem ser mudadas. Assim, deve-se ressaltar que o protagonismo femino vem crescendo e contribuindo, com muita luta, para mudar essa realidade.
Queridos “fino señores”: lugar da mulher é onde ela quiser!
Bruna Cavati Rossi
Naomi Prates de Lemos Santos
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