A gestão de Lorenzo Pazolini, atual prefeito da cidade de Vitória, anunciou um plano de investimento de R$ 1 bilhão no começo de 2022, a ser concretizado até o fim de seu mandato, em 2024 [1]. Parte relevante desse montante foi destinada a obras na área de infraestrutura, com modificações que planejam transformar locais de convívio popular da capital capixaba, como a Curva da Jurema e a Rua da Lama, em polos gastronômicos. Tais transformações são fundamentadas nos propósitos de embelezamento da cidade e melhora na qualidade de vida da população como um todo; mas seus resultados não são exatamente os promovidos. Com a reestruturação dessas áreas, o acesso pleno tornou-se limitado a parcelas mais abastadas da população, dificultando o uso desses espaços devido ao elevado custo. Estamos, assim, diante de um fenômeno urbano denominado gentrificação.
Esse conceito foi criado e apresentado em 1964 pela socióloga britânica, Ruth Glass, para descrever e analisar transformações observadas em diversos bairros operários em Londres [2]. A gentrificação ocorre quando áreas antes ocupadas por populações de baixa renda e minorias étnicas são revitalizadas e passam a atrair moradores de classe média e alta, resultando em aumento dos preços imobiliários e expulsão dos moradores originais.
Apesar de sua origem datar um período anterior, o processo de gentrificação nos espaços urbanos se intensificou a partir da década de 1980. Em razão da crise dos anos 1970, o Estado passou a adotar políticas neoliberais, que reconhecem em áreas abandonadas e subvalorizadas a oportunidade de atrair investimento privado, pautadas na lógica de que esse, por meio da geração de empregos e de riqueza, possui a capacidade de gerar o bem-estar social que era antes responsabilidade estatal [3].
Nessa perspectiva, David Harvey, importante geógrafo urbano, sugere, à luz da teoria marxista, que a gentrificação trata-se de um desdobramento do atual estágio do capitalismo ‒ o capitalismo flexível. Este é caracterizado pela abertura de novas esferas de acumulação, sobretudo da acumulação por espoliação, isto é, aquela em que bens e serviços de domínio coletivo são incorporados à esfera de circulação capitalista [4]. Como bem expressou Harvey, “coisas que deveriam ser direitos se tornam mercadorias”.
Ademais, Neil Smith, também geógrafo urbano, aponta que a reestruturação do espaço urbano está diretamente relacionada à reestruturação da economia capitalista. Smith explica que o acentuamento da gentrificação coincide com épocas em que os mercados estão inundados de liquidez e enfrentando problemas de acumulação no processo de produção. Na concepção do geógrafo, as crises inerentes ao capitalismo somente são superadas devido à possibilidade de canalização do investimento para setores além do produtivo; dentre eles, o imobiliário.
Segundo a mestre em geografia, Juliana Santos Ramosi [5], consegue-se ver fragmentos deste fenômeno no Brasil após a Proclamação da República. Na tentativa de romper politicamente com a percepção nacional e internacional de espaço colonizado, “atrasado” em relação à Europa, o Estado brasileiro criou uma política pública urbana de acordo com a belle époque. Dessa forma, o centro da cidade do Rio de Janeiro foi remodelado inspirado na disposição urbana parisiense.
Neste caso, a população mais influente do antigo bairro de São Cristovão, e arredores, migrou para bairros da região sul do Rio de Janeiro, como Botafogo, Glória, Urca, Flamengo e Copacabana. Nesse sentido, o governo não mediu esforços em obras voltadas para a urbanização, paisagismo e infraestrutura nestas localidades, acarretando em uma valorização imobiliária, atraindo famílias com alto poder aquisitivo e expulsando a população que ocupava aquelas terras de forma.
Para entendermos a atualidade dessa elitização dos espaços públicos, pode se observar o ocorrido na Curva da Jurema, uma praia de Vitória [6]. Após os quiosques passarem por obras de revitalização, a prefeitura da cidade emitiu um aviso aos ambulantes que trabalham na área, delimitando o espaço em que estes poderiam atuar a partir do dia 11 de janeiro de 2023. Agora, os vendedores só estariam livres para comercializar suas mercadorias a uma distância de 200 metros dos quiosques. Em resposta à medida ‒ que, felizmente, foi revogada ‒ Carmelita Mendes, uma das ambulantes que atuam na Curva da Jurema, expressou sua indignação em entrevista concedida à Gazeta: “A gente investe em mercadoria, daqui que a gente tira o nosso sustento. Do que que a gente vai viver? Disse que aqui agora virou área gourmet. Área gourmet só dos ricos, e os pobres, onde ficam?".
Ainda sobre as obras na Curva da Jurema, o professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Kleber Frizzera, aponta haver um esforço para alterar o público que frequenta a área [7]. Nas palavras do próprio professor, “o comprador do imóvel não vai querer que ao lado tenha uma praia popular”. Segundo ele, a elevação dos preços de consumo na Curva da Jurema implica na expulsão das pessoas, ou pelo preço ou por certas imposições, como a realizada pela prefeitura de Vitória.
Independente da distância temporal e geográfica, algo em comum, que atua como fator-chave para a concretização do processo de “enobrecimento” dos espaços urbanos, é perceptível em ambos os exemplos mencionados: a mobilização financeira do Estado. Ainda que visem a valorização da imagem da cidade, a geração de emprego e o crescimento econômico, tais modificações nos espaços urbanos não deixam de funcionar como mecanismo de mobilização de grandes investimentos públicos. Assim, funcionando como subsídios a agentes economicamente favorecidos ‒ empresas do ramo de construção civil, por exemplo ‒, esses refletem a já mencionada reorientação no papel do Estado que, se teve algum foco no bem-estar da população em alguns países, hoje centra nitidamente suas ações no bem-estar das corporações capitalistas.
Isto significa que, apesar dessas intervenções públicas virem acompanhadas de palavras que embelezam e mascaram os interesses por trás delas, como “reurbanização” ou “revitalização”, estas representam os interesses de uma parcela restrita e privilegiada da sociedade. Assim, enquanto uma parte da população goza das regalias da especulação imobiliária e de espaços de maior qualidade, a outra é praticamente expulsa das regiões reformadas, impossibilitada de arcar com a elevação dos custos de vida, e lançada à marginalização socioeconômica das periferias, num processo que Smith denomina de “filtragem social”.
Sendo assim, podemos apontar a gentrificação como manifestação da luta de classes: de um lado, os mais ricos, cujos interesses são representados pelo Estado, uma vez que este é, justamente, composto pela burguesia; do outro, os mais pobres, excluídos do convívio social, impedidos de trabalhar de forma de digna e tendo seus direitos constitucionais, como o acesso à moradia e ao lazer, negados. Estar ciente do processo de gentrificação e entender o que acontece nos "bastidores" de obras de revitalização, por exemplo, pode nos ajudar a perceber que tais modificações estão, na verdade, relacionadas a algo muito maior, movido pelas necessidades do capital e pelo interesse daqueles que o possuem, configurando um mecanismo de alargamento do fosso socioeconômico na sociedade neoliberal hodierna. Assim, torna-se de extrema importância que estejamos atentos e denunciemos essas políticas discriminatórias e as tentativas de se transformar os espaços urbanos em arenas de segregação, uma grande Alphaville [8], pois, como bem expresso por Harvey, “as cidades são para as pessoas, não para o capital”.
Isabela Ahouagi
Matheus Leopoldo
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
Pazolini planeja investir R$ 1 bilhão em quatro anos. Vitória News, 2022. Disponível em: https://shre.ink/HkD4. Acesso em: 25 maio 2023.
ALCÂNTARA, Maurício Fernandes de. 2018. "Gentrificação". In: Enciclopédia de Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia. Disponível em: https://shre.ink/HkaC. Acesso em: 25 maio 2023.
MENDES, Luís. Gentrificação e políticas de reabilitação urbana em Portugal: uma análise crítica à luz da tese rent gap de Neil Smith. Cadernos Metrópole, v. 16, p. 487-511, 2014. Disponível em: https://shre.ink/QwTi. Acesso em: 20 maio 2023.
RODRIGUES, Alexandra Arnold; DE FARIA, José Henrique. Desenvolvimento territorial e gentrificação: reflexões sobre governança urbana e critérios de justiça. Disponível em: https://shre.ink/Qw6n. Acesso em: 20 maio 2023.
RAMOSI, Juliana Santos. A Gentrificação no Rio de Janeiro e as consequências nas periferias. GeoPUC – Revista da Pós-Graduação em Geografia da PUC-Rio Rio de Janeiro, v. 12, n. 23, p. 188-199, 2019. Disponível em: https://shre.ink/QwKf . Acesso em: 19 maio 2023.
Limitação de área para ambulantes em praia de Vitória causa polêmica: 'E os pobres, onde ficam?'. G1, 2023. Disponível em: https://shre.ink/HdJr. Acesso em: 23 maio 2023.
Gentrificação na Curva da Jurema: ‘A elite não pode ter vista para os pobres’. Século Diário, 2022. Disponível em: https://shre.ink/HUC0. Acesso em: 02 jun. 2023.
Alphaville é o nome recebido por bairros nobres, presentes em diversas cidades brasileiras, conhecidos por seus condomínios de alto padrão e custo.
ARIONAURO CARTUNS. Charge Segregação. 2016. Disponível em: https://shre.ink/QwTd. Acesso em: 19 maio 2023.
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