Blog do AFTM. Disponível em: <https://blogdoaftm.com.br/charge-endividamento-das-familias/>. Acesso em: 20 set. 2021.
Tragédia. Fome. Endividamento. Palavras fortes que retratam a péssima gestão do presidente Jair Bolsonaro frente à economia brasileira nesses quase três anos de seu governo, período no qual diversos dados macroeconômicos apresentaram considerável deterioração, seja no aumento desenfreado do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial da inflação no Brasil, ou no decrescimento no Produto Interno Bruto (PIB), que no segundo trimestre de 2021 retraiu 0,1%, em comparação com o trimestre imediatamente anterior[1]. Nesse contexto, um dos efeitos gerados pela fragilização da economia brasileira no governo Bolsonaro foi o aumento de uma das mazelas que perduraram na realidade brasileira na última década: o endividamento familiar.
Destarte, de acordo com a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), realizada pela Confederação Nacional de Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), no mês de agosto de 2021, o total de famílias endividadas no Brasil chegou a 72,9%, o maior patamar da série histórica iniciada em janeiro de 2010, sendo que 10,7% das famílias não terão condições de pagar suas dívidas, causando um aumento expressivo na Inadimplência[2]. Diversos fatores podem explicar o crescente endividamento familiar, sendo eles, principalmente, o aumento da inflação e as precariedades presentes no mercado de trabalho.
A priori, é essencial observar que o principal grupo que sofre com o endividamento familiar, ainda de acordo com os dados da PEIC do mês de agosto, são as famílias com até 10 salários mínimos, ou seja, subgrupo que corresponde às famílias de menores rendimentos com base na divisão interna pesquisa. Consoante a análise do relatório especial da CNC, intitulado “Um retrato recente do endividamento dos consumidores: o que ele expõe?”, um dos fatores responsáveis por deixar as contas das famílias brasileiras dessa faixa de renda "no vermelho" foi a elevação da inflação[3]. Assim, apesar do atual ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizar seus efeitos, ao afirmar que uma inflação entre 7% e 8% estaria “dentro das regras do jogo”[4]. É evidente o contraste da fala com a realidade vivida por uma considerável parcela da população brasileira, visto que, segundo os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o IPCA do mês de agosto, apresentou uma elevação de 0,87%, número recorde para o mês desde o ano 2000. Ademais, o IPCA já acumula uma alta nos últimos doze meses de 9,68%, um valor acima da meta de inflação de 3,75%, para o ano de 2021, estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN)[5].
Por conseguinte, a inflação aumentou os custos essenciais das famílias brasileiras, observando os dados acumulados nos últimos doze meses, em áreas como a Alimentação e bebidas, os Transportes e a Habitação. Desse modo, Alimentação e bebidas obteve uma alta de 13,94%, sendo puxado principalmente pelo aumento das carnes (30,77%), do arroz (32,88%), do macarrão (12,64%), do tomate (31,41%) e do pepino (59,26%). Além disso, o grupo dos Transportes apresentou alta de 16,63%, influenciado principalmente pela alta de 41,33% nos combustíveis, o que proporcionou uma elevação dos índices do transporte público (3,81%) e transportes por aplicativo (6,06%). Da mesma forma, a Habitação apresentou uma alta de 11,57%, influenciada principalmente pelo aumento da energia elétrica residencial (21,08%), do gás de botijão (31,70%) e do gás encanado (18,99%)[6]. Assim, visando suprir suas necessidades básicas, as famílias gastam parte significativa de seu orçamento em suprimentos básicos, ocasionando a criação de novas dívidas. Isso pode ser observado nos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) 2017-2018, divulgada pelo IBGE, segundo a qual, as famílias de até dois salários mínimos gastavam aproximadamente 61% do orçamento com habitação e alimentos.
É compreensível, mas lamentável uma possível tentativa de imputar a culpa pela dificuldade do controle de gastos às famílias trabalhadoras, haja vista a desconformidade entre o ritmo do reajuste de preços, por um lado, e o de salários, de outro. Esse descompasso é evidenciado pela Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, feita pelo Dieese, que divulga mensalmente a comparação entre o salário nominal (aquele que os trabalhadores recebem) e o que seria o necessário. No mês de agosto de 2021, enquanto o salário nominal permaneceu em R$1100,00, o salário necessário, ou seja, aquele que seria o ideal para se assegurar a qualidade de vida da população, estava em R$5.495,52. Esse fato leva a questionar como as famílias de menores rendimentos conseguiriam alocar todos os seus gastos com uma renda que tem se mostrado claramente abaixo do necessário.
Ao comparar o salário mínimo atual com o valor da cesta básica, há um nítido contraste e desalinhamento. O preço da cesta básica vem crescendo mais que o ajuste que está sendo feito no salário mínimo. Foi constatado um aumento em 15 das 17 capitais pesquisadas pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese)[7] na comparação entre julho e junho de 2021. Porém, a cesta mais cara do país no mês de junho foi encontrada em Florianópolis, onde custava aproximadamente R$645, mais de 50% do valor disposto pelo salário mínimo. Sabe-se que não é apenas a despesa com alimentação que tem sido integrada às contas e dívidas. Gastos com aluguéis e residência, água, energia, gás de cozinha, transporte, entre outros, também compreendem os gastos financeiros familiares. Ainda que o auxílio emergencial do governo federal e os programas estaduais de distribuição de renda atenuassem a situação, nenhum desses reduz a gravidade da realidade enfrentada pelos brasileiros.
Com o fim do auxílio e o atraso no calendário de vacinação, as famílias de menor renda precisarão adotar maior rigor na organização do orçamento. Essa conjuntura faz o crédito ter um papel mais importante na recomposição da renda. “É preciso seguir ampliando o acesso aos recursos com custos mais baixos, mas também alongar os prazos de pagamento das dívidas para manter a inadimplência sob controle”, disse Izis Ferreira, economista responsável pela pesquisa da CNC.[8] Na visão de Fábio Bentes, economista-sênior da CNC, a retirada do benefício no início do ano, mesmo que a disseminação da Covid-19 estivesse se arrefecendo, pressionou a renda das famílias neste ano: “O certo, talvez, seria ter feito um auxílio um pouco menor no ano passado, mas que não fosse interrompido abruptamente no começo deste ano”. Além disso, Bentes complementa: “Sem o auxílio, o endividamento das famílias, que já estava num nível recorde em dezembro, voltou a crescer, ultrapassando os 30% (de comprometimento da renda)”[9], ou seja, a cada 100 reais, aproximadamente 30 reais é destinado ao pagamento de contas.
Outro fator preponderante para a elevação do endividamento familiar no país foi a precariedade no mercado de trabalho vista em 2021. Nesse contexto, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) Contínua do segundo trimestre de 2021, a população desempregada brasileira se elevou para um total de 14,1% [10], o que equivale a cerca de 14,4 milhões de trabalhadores desempregados, além da informalidade que alcançou cerca de 34,7 milhões de pessoas[11], dado que engloba trabalhadores sem carteira assinada, pessoas que trabalham por conta própria sem CNPJ e pessoas que trabalham auxiliando famílias. Além do desemprego e da informalidade, o rendimento médio real da população empregada no Brasil também apresentou retração em seus índices. Assim, no segundo trimestre de 2021, alcançou o valor de R$2.515, uma redução de R$178 em comparação com o segundo trimestre de 2020[12].
Outrossim, ainda de acordo com a análise do relatório “Um retrato recente do endividamento dos consumidores: O que ele expõe?”, impactados com a elevação da inflação e do desemprego, as famílias de baixa renda foram obrigadas a utilizar o cartão de crédito como forma de adquirirem bens essenciais para a sua sobrevivência, como produtos alimentícios e higiênicos, e por conseguinte, contraíram mais dívidas. Assim, o endividamento por cartão de crédito no país alcançou um patamar de 83,6%, maior valor da série histórica iniciada em 2010. À vista disso, o endividamento alcançado em agosto de 2021 pode agravar o cenário da economia brasileira e as perspectivas para a retomada econômica no pós-pandemia, visto que foi superior em 4,2 pontos percentuais (p.p) ao mês de dezembro de 2020 e superior 5,8 p.p no mesmo mês do ano anterior. Ademais, outras modalidades de dívidas também obtiveram altas, como por exemplo o crédito pessoal, que alcançou o valor de 9,5%, um aumento de 1,9 p.p em comparação com novembro de 2020; e os carnês, registraram o valor de 18,2%, uma elevação de 1,4 p.p, em comparação com janeiro de 2021[13].
Desse modo, com o endividamento crescente do cartão de crédito, grande parcela da população brasileira se torna dependente dos bancos, o que pode ser observado pelos dados do Banco Central, no qual o endividamento Familiar com o Sistema Financeiro Nacional atingiu o valor, em abril de 2021 de 58,5%. No entanto, as famílias mais dependentes do sistema bancário ficaram fragilizadas, enquanto os bancos, com as suas altas taxas de juros, aumentaram seus lucros. Assim, em 2021, apesar de grande parcela da população brasileira sofrer com o impacto da crise econômica vigente, os lucros somados do Bradesco, Banco do Brasil, Itaú e Santander, no segundo trimestre de 2021, apresentaram uma alta de 63,6%, em comparação com o mesmo período do ano anterior, totalizando R$22,1 bilhões[14]. O questionamento então passa a ser a possibilidade, mesmo diante da delicada realidade, de os juros tornarem-se um mecanismo perverso de transferência de renda das famílias de trabalhadores mais pobres para os banqueiros, ou seja, o já abastado sistema financeiro; uma transferência de renda do pobre para o rico.
Como vemos, devido a uma série de fatores anteriormente citados, que muitas vezes ultrapassam o âmbito individual acerca da administração de suas contas, grande parte dos brasileiros passam a se endividar, se submetendo aos bancos e à elevação de juros na economia. Não há dúvidas de que considerar a prorrogação de prazo e renegociação de empréstimos pessoais, de financiamento imobiliário, de veículos e etc. é importante para reduzir os impactos da pandemia, e os bancos e corretoras estão buscando atender à essa necessidade - visto que já começam a perceber novas e contínuas dificuldades dos clientes neste momento grave de pandemia[15]. Porém, as modalidades de cartão de crédito e cheque especial representam as despesas ordinárias de diversas famílias, e a impossibilidade de pagamento ou prorrogação de prazo pode acarretar o aumento do superendividamento da população.
Portanto, com as precariedades do mercado de trabalho e a elevação da inflação, principais promotores do endividamento familiar, a retomada econômica fica arruinada, visto que o aumento do endividamento prejudica o principal motor da economia brasileira, de acordo com a ótica demanda, o consumo das famílias, que no ano de 2020 representou 62,7% da composição do PIB brasileiro[16]. Ademais, como agravante, de acordo com os dados do Serasa, cerca de 62 milhões de brasileiros têm o nome negativado, o que impossibilita o acesso ao crédito a uma grande parcela da população, e por ser a válvula de escape em momentos instáveis, consequentemente, diminui o consumo das famílias em território nacional[17]. Assim, torna-se ainda mais importante o cuidado para que as dívidas e inadimplências não se tornem uma “bola de neve”. Pode-se dizer que o controle das dívidas a níveis sustentáveis perpassa por uma maior capacitação das famílias em temas como a educação financeira. No entanto, é difícil pensar no planejamento familiar com o cenário econômico brasileiro extremamente caótico, marcado por uma economia com tendências recessivas, uma pandemia sem controle, impulsionada por uma gestão irresponsável do governo federal, e o apoio do Estado cada vez menor, em alguns casos, ausente.
Alexandra Rayssa Matheus Maia
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
[1] PIB fica em -0,1% no 2º trimestre de 2021. Agências de Notícias IBGE, 2021. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/31494-pib-fica-em-0-1-no-2-trimestre-de-2021>. Acesso em: 02 de ago. 2021 . 2021.
[2] UM RETRATO RECENTE DO ENDIVIDAMENTO DOS CONSUMIDORES: O QUE ELE EXPÕE?. CNC,2021. Disponível em: <https://portal-bucket.azureedge.net/wp-content/2021/08/Analise-Peic-Agosto-de-2021_especial.pdf>. Acesso em: 02 de ago. 2021 .
[3] Idem. ibidem.
[4] MARTINS, Raphael. Inflação está 'dentro do jogo', como disse Guedes? Entenda por que a escalada de preços preocupa. G1, 2021. Diponível em:<https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/08/25/inflacao-esta-ou-nao-dentro-do-jogo-como-disse-guedes-entenda-por-que-a-escalada-de-precos-preocupa.ghtml>. Acesso em: 02 de ago. 2021.
[5] VERDÉLIO, Andreia. Mercado financeiro eleva projeção da inflação para 6,79%. Agência Brasil, 2021. Disponível em:<https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-08/mercado-financeiro-eleva-projecao-da-inflacao-para-679#>. Acesso em: 19. set. 2021 [6] IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICa.Tabela 7060 - IPCA -Variação mensal, acumalada no ano, acumulada em 12 meses e peso mensal, para o índice geral, grupos, subgrupos, itens e subitens de produtos e serviços (a partir de janeiro/2020. Disponível em <https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7060#/n1/all/n7/all/n6/all/v/69/p/202108/c315/all/d/v69%202/l/,p+t+v,c315/resultado>.Acesso em: 19. set. 2021
[7] ALVES, Glaucia. Ranking com a cesta básica mais barata e mais cara do Brasil. FDR, 2021. Disponível em: <https://fdr.com.br/2021/07/12/ranking-com-cesta-basica-mais-barata-e-mais-cara-do-brasil/>. Acesso em: 05. set.2021
[8] ENDIVIDAMENTO das famílias. Correio Braziliense, 2012. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2021/03/4909550-endividamento-das-familias.html >. Acesso em: 03. set.2021
[9] MENDES, Felipe. Com endividamento crescente, auxílio emergencial irá para pagar contas. Veja, 2021 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/economia/com-endividamento-crescente-auxilio-emergencial-ira-menos-para-o-consumo/>Acesso em: 03. set.2021
[10] IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Segundo Trimestre de 2021. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2421/pnact_2021_2tri.pdf>. Acesso em: 04. set.2021
[11] ABDALA, Vitor. Taxa de informalidade no mercado de trabalho sobe para 40%, diz IBGE. Agência Brasil, 2021. Disponível em:<https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-07/taxa-de-informalidade-no-mercado-de-trabalho-sobe-para-40-diz-ibge>. Acesso em: 01. set.2021. [12] Idem. ibidem.
[13]Série Histórica PEIC. Disponível em: <https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-julho-de-2021-especial/372034>. Acesso em: 02. ago.2021
[14] RODRIGUES. Douglas. Lucro dos grandes bancos sobe 64% no 2º trimestre de 2021. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/economia/lucro-dos-grandes-bancos-sobe-64-no-2o-trimestre-de-2021/>. Acesso em: 19. set. 2021 [15] RODRIGUES, Eduardo; CASTRO, Fabrício. Com a pandemia, bancos devem voltar a ampliar prazo de dívidas. CNN Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/com-pandemia-bancos-devem-voltar-a-ampliar-prazo-de-dividas/>Acesso em: 01. set.2021.
[16] IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.Contas Nacionais Trimestrais Indicadores de Volume e Valores Correntes Out.-Dez. 2020. Disponível em:<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2121/cnt_2020_4tri.pdf>.Acesso em: 01. set.2021.
[17] MACIEL, Camila. Mapa da Inadimplência aponta mais de 62 milhões de endividados. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-07/mapa-da-inadimplencia-aponta-mais-de-62-milhoes-de-endividados>. Acesso em: 19. set. 2021
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