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Capital e natureza: a dialética da exploração


LAERTE. Charge sobre a crise ecológica. Disponível em: https://www.reddit.com/r/brasil/comments/12pbq7h/laerte_eu_n%C3%A3o_entendi/. Acesso em: 03 set. 2024.


A Flor e a Náusea

[...]

As coisas

Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase

Vomitar este tédio sobre a cidade

Quarenta anos e nenhum problema resolvido,

sequer colocado

Nenhuma carta escrita nem recebida

Todos os homens voltam para casa

Estão menos livres mas levam jornais

e soletram o mundo, sabendo que o perdem

[..]

Carlos Drummond de Andrade


Em “A Flor e a Náusea”, Drummond, um dos maiores poetas brasileiros, evidencia o caráter hostil e desolador do ambiente urbano, além de expressar um certo distanciamento entre homem e natureza. O poema publicado em 1945, hoje, ganha cada vez mais significado, à medida que a humanidade é assolada pela crise ecológica. Na contemporaneidade, o desequilíbrio climático, a perda de biodiversidade e a poluição desmedida são apenas alguns dos sinais de alerta que indicam o grau de exaustão natural. O fiasco da humanidade em zelar pelo meio ambiente do qual ela mesma necessita para subsistir - e existir - é evidenciado, recorrentemente, não só pelos desastres ambientais cada vez mais frequentes, mas também pelas incontáveis evidências científicas. No entanto, com a acentuação da crise ecológica, o homem, cada vez mais, se torna um mero espectador da extinção da natureza tal como é conhecida e, por conseguinte, da sua própria extinção. 


As dimensões tomadas pela crise ecológica já não mais em iminência, mas em andamento e em vias de acentuação, pressupõem, fundamentalmente, um abismo entre homem e natureza. Sob qualquer forma social, a integração do homem à natureza ocorre, principalmente, por meio do processo de trabalho. No entanto, sob os moldes do modo de produção capitalista, tal forma de relação entre homem e natureza ganha contornos próprios, de modo a tornar, em aparência, homem e natureza entidades desconexas, como se a primeira não fizesse parte da última [1]. E, assim, no capitalismo, forja-se uma separação pretensamente necessária entre a humanidade e a natureza, responsável por permitir que, em um movimento dialético, a ampliação do controle humano sobre a natureza esteja subordinada à necessidade de valorização do capital e, cada vez menos, aos interesses da coletividade humana. Cabe, aqui, analisar a questão mais de perto.


Em primeiro lugar, sob qualquer forma social, o processo de trabalho corresponde a uma atividade humana de manipulação da natureza orientada a um fim, com o intuito de satisfazer suas necessidades - sejam elas do estômago ou da fantasia. Em outras palavras, o processo de trabalho corresponde à relação universal entre natureza e homem, de modo que tal relação configura-se como a condição inerente à perpetuação da própria existência humana [2]. A partir disso, tem-se o que não é novidade para ninguém: o homem vive da natureza, na medida em que depende dela em um processo contínuo e permanente para a garantia de sua própria vida. E existe, então, um cordão umbilical que une o homem à natureza; juntos, compõem um metabolismo natural, em que, dialeticamente, o homem modifica a natureza ao passo que modifica a si mesmo [3].


No entanto, ao analisar o que ocorre com o processo de trabalho dentro dos parâmetros do modo de produção capitalista, a relação entre o homem e a natureza aparece envolta por uma névoa misteriosa que dificulta a sua identificação. Ao passo que o trabalhador, executor do processo de trabalho, torna-se uma mercadoria, o processo produtivo assume um caráter dual. Como processo de trabalho, não deixa de ser um processo de criação em que o homem imprime sua força de trabalho na natureza para a realização de suas potencialidades, como um meio de humanização e socialização do ser humano. No entanto, ao mesmo tempo, como processo de valorização, assume uma forma social e historicamente determinada pelas bases em que se gesta o modo de produção capitalista, ancoradas na espoliação dos meios de produção e na transformação da força de trabalho em assalariada [4], e que constituem o arcabouço histórico da alienação e da desumanização do homem durante e por meio do processo de trabalho. 


Como fator de produção inerente à valorização do capital, a força de trabalho é vinculada a um processo produtivo que não lhe pertence, empenhada na produção de um produto que lhe pertence menos ainda. A lógica capitalista transforma o produto do trabalho humano em trabalho estranho [5], na medida em que o homem não enxerga, no produto do seu trabalho, o seu próprio corpo. E, então, o duplo caráter do processo de produção reside no fato  de que, como processo de trabalho, ele permanece sendo meio de integração à natureza, mas, como processo de valorização [6] do capital, configura-se como alienante, na medida em que torna o sujeito do processo, o trabalhador, alienado (i) ao processo de produção, (ii) ao produto do seu trabalho, (iii) a si mesmo e (iv) ao outro. Assim, as relações sociais de produção capitalista, em plena obediência ao deus-capital, limitam a forma que o homem possui de relacionar-se com a natureza ao processo alienante de trabalho subordinado à valorização do valor. Trata-se de uma fenda metabólica entre o homem e a natureza.


Além disso, para compreender a crise ecológica que se desenvolve no modo de produção capitalista, faz-se necessário compreender a reificação e a mercantilização da natureza. Desde o princípio, a produção capitalista esteve empenhada na exploração contínua e permanente das fontes originais de toda a riqueza - o solo e o trabalhador [7]. Em primeiro lugar, cabe compreender que o movimento do capital não consiste em uma mera busca pelo excedente, mas em uma busca incessante pelo excedente; a Lei do Valor parece sussurrar sempre ao pé da orelha do capitalista: “Continue” [8]. Nesse sentido, o processo de reificação da natureza trata-se de um processo necessário para torná-la objeto de exploração pelo capital, seja como objeto de consumo ou meio de produção. A instrumentalização da natureza em função da acumulação de capital é estabelecida sob moldes despreocupados e alheios à manutenção da biodiversidade e às relações mútuas entre a humanidade e a natureza não humana. O motivo é evidente: a acumulação de capital é um fim em si mesma; ela não se preocupa em ser sustentável à natureza e/ou à vida humana - embora sua perpetuação dependa de ambos. 


A crise ecológica, historicamente gestada no bojo do processo de acumulação capitalista, constitui uma ameaça real à vida humana, mas que parece não estar sendo levada suficientemente a sério. Sob os moldes de exploração da natureza atuais, a possibilidade de que a civilização humana sobreviva a um colapso ambiental é mínima [9]. Mesmo assim, as saídas convencionais à crise, retoricamente difundidas entre os países, estão vinculadas a uma suposta ação estatal ou à atuação do capital privado para a contenção das tendências de declínio da vida humana e da natureza, mas o fato é que o Estado tem atuação limitada pelos interesses da classe dominante, e o capital, por sua vez, é o grande maestro da orquestra da decadência social e ambiental. 


Por fim, a crise ecológica não pode ser dissociada das inúmeras contradições imanentes ao modo de produção capitalista, cujos moldes estão, intrinsecamente, vinculados à exploração alienante da força de trabalho e degradante da natureza. A contradição entre capital e natureza, marcada por uma tensão entre a necessidade de expansão da acumulação de capital e a exaustão dos recursos naturais, torna-se cada vez mais evidente. Logo , a dissolução dessa contradição e a superação da crise ecológica, efetivamente, poderia ser realizada por meio da superação do modo de produção que a forjou, a partir de uma nova relação social de produção, que permitisse uma outra forma de manipulação do homem sobre a natureza. Mas os tempos são sombrios e, como bem disse Mark Fisher, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. 


                                                           Gabriela Morozini

João Henrique Nascimento

Referências:


[1] MARX, Karl. Trabalho Estranhado e Propriedade Privada. In: ____. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Tradução de Jesus Ranieri. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 79-90.

[2] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1, cap. 5, p. 255-275

[3] MARX, Karl. Trabalho Estranhado e Propriedade Privada. In: ____. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Tradução de Jesus Ranieri. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 79-90.

[4] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1, cap. 4. 

[5] MARX, Karl. Trabalho Estranhado e Propriedade Privada. In: ____. Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Tradução de Jesus Ranieri. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 79-90.

[6] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1, cap. 5, p. 255-275.

[7] FOSTER, John Bellamy. Marx’s Ecology. Revista NEILS, v. 28, p. 55-78, 2020. Disponível em: https://www4.pucsp.br/neils/revista/vol.28/john-bellamy-foster.pdf.

[8] MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política; Livro I: o processo de produção do capital. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 1, cap. 4.

[9] Bologna, M., & Aquino, G. Deforestation and World Population Sustainability: A Quantitative Analysis. Scientific Reports, vol. 10, no. 1, 2020. Nature. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41598-020-63657-6. Acesso em: 30 ago. 2024.

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