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Cannabis: uma questão de saúde pública

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Dando um rolê na Marcha da Maconha. Disponível em: https://jornalcomunicacao.ufpr.br/dando-um-role-na-marcha-da-maconha/. Acesso em: 16 maio 2024. (“Bloco das Mães” protestando pelo uso medicinal da cannabis).


“Enquanto uns choram, outros vem e os devoram. 

O meu pensamento não é como o seu. 

Tabaco ou maconha, o que te envergonha?”

Mantenha o respeito - Planet Hemp

 

Na música "Mantenha o Respeito", de 1995, o grupo musical Planet Hemp critica o caráter conservador da população brasileira em relação à maconha. Fato é, no entanto, que desde então essa postura conservadora tem permanecido predominante, mesmo com a intensificação dos estudos sobre o uso medicinal da cannabis, os quais têm revelado significativos resultados positivos no campo da saúde. 


É necessário observar, no entanto, que tal preconceito é um fenômeno de nossa era, sendo a utilização terapêutica desta erva muito mais antiga. Ela foi uma das primeiras plantas cultivadas pela espécie humana, empregada ao longo da história para fins ritualísticos, comerciais e medicinais. Destacam-se, por exemplo, evidências arqueológicas do seu cultivo na China de 8000 a.C. A cannabis foi classificada como medicamento muito antes da era moderna, tida como eficaz no tratamento de epilepsia, dores e processos inflamatórios pelo considerado pai da farmacologia, Pedânio Dioscórides. Até o início do século XX, as farmácias norte-americanas vendiam remédios à base de cannabis e ela estava incluída no código oficial farmacêutico norte-americano, período em que era consumida por grupos de minorias sociais: árabes, chineses, mexicanos e afrodescendentes. [1]


Esse perfil dos consumidores da maconha foi um dos motivos para o início das campanhas de criminalização nos Estados Unidos. Em 1910, ocorreu uma migração em massa de fugitivos da Revolução Mexicana. Esses imigrantes eram associados ao consumo de cannabis, fato que serviu como justificativa para a prisão e a deportação desses grupos minoritários. [2] Além disso, outra questão importante para essa criminalização foram os interesses econômicos. As indústrias de algodão e de nylon, por exemplo, estimularam campanhas proibicionistas, motivadas pela utilização da cannabis como uma fibra para produzir tecidos, cordas, roupas e papel. [3]


Durante o século XX, as campanhas antidrogas se espalharam por outros países que tinham influência norte-americana, sendo o Brasil um deles. Os negros, no cenário brasileiro, foram o público associado à maconha e, em 1929, ela foi classificada como uma droga ilícita. [4] Dentro desse contexto, tal campanha proibicionista criou no imaginário popular, por meio de aparelhos ideológicos e midiáticos que persistem até hoje, uma imagem da cannabis como um grande mal que deve ser combatido. Essa  construção ideológica, desde então, justifica a violência policial, a chacina nas favelas, o superencarceramento e outras graves consequências.


Dessa maneira, emergiu uma considerável barreira à permanência da utilização da cannabis enquanto agente terapêutico, em especial, no que tange aos seus princípios ativos, tetraidrocanabinol (THC) e canabidiol (CBD) [5], os quais, não obstante os progressos na medicina, persistem enquanto uma das poucas opções para atenuar os sintomas associados a uma diversidade de doenças, como Alzheimer, Parkinson, isquemias cerebrais e artrite reumatoide. Não apenas como uma das opções, mas como uma das mais eficientes. O CBD, por exemplo, não induz à dependência nem provoca efeitos adversos, como sonolência, tontura, comprometimento da memória, ansiedade e outras manifestações sintomáticas comuns em fármacos ansiolíticos. [6]


E é justamente devido a essa excelência enquanto agente terapêutico que uma miríade de cidadãos confrontam o proibicionismo na busca por um tratamento digno. Tal é o caso de muitas mães e pais que batalham para garantir o acesso a medicamentos à base de cannabis para tratar doenças que acometem os seus filhos. Ayan, por exemplo, é uma criança de seis anos que experimentava até 5 episódios de epilepsia por dia, até que a sua mãe, Keila, conseguiu aprovação para utilizar a cannabis medicinal. A partir desse momento, o seu filho permaneceu livre de crises por mais de 220 dias seguidos. Apesar desse sucesso terapêutico, Keila reporta a persistência do estigma por parte de outras mães, professoras e até mesmo membros da comunidade médica. [7]


Apesar disso, há importantes iniciativas atuais em matéria de avanço no uso da cannabis medicinal, como é o seu uso por  atletas profissionais. Um marco para esse tipo de tratamento foi a retirada do CBD em 2018, pela Agência Mundial Antidoping, da lista de substâncias proibidas no esporte. Os outros compostos da cannabis, porém, continuam vetados. 


Esses avanços, no entanto, não se dão de maneira uniforme no mundo. Enquanto na Europa e nos EUA tal questão se apresenta mais avançada, no Brasil, raros são os casos de atletas que utilizam a cannabis. Um desses casos é o do atleta capixaba Bruno Altoé [8], ex-atleta da Seleção Brasileira de Judô, atleta de Jiu-Jitsu e campeão mundial em 2024. Hoje, ele é patrocinado pela Carmen's Medicinal, empresa que promove produtos de terapia canabinoide, uma vez que o esporte profissional gera consequências na saúde física e mental.


Altoé afirmou que o uso do CBD resolveu diversos problemas. Acabou com a insônia, que era decorrente dos treinos à noite; tratou a azia crônica; e auxiliou na recuperação dos treinos. Consequentemente, o retirou do ciclo vicioso dos medicamentos alopáticos, como anti-inflamatórios e relaxantes musculares. Fato importante, pois os remédios alopáticos podem causar, se utilizados em grande regularidade (o que ocorre com atletas e pessoas com doenças crônicas) a dependência, a obesidade, o “sono artificial” (sem qualidade), a perda de memória e outras consequências. O atleta, em entrevista, afirmou: “Tenho uma vida muito melhor, muito mais saudável e tenho muito mais performance dentro do esporte.”


Apesar dessa relevância terapêutica, o que prevalece hoje é, sem dúvida, o preconceito, a desinformação e as dificuldades de acesso à cannabis, sendo uma das principais a burocracia. A utilização desses medicamentos, por exemplo, deve possuir aprovação de pedido pela Agência de Vigilância Sanitária. Além disso, segundo a legislação brasileira, a importação, a fabricação e a prescrição para fins medicinais devem seguir uma série de requisitos e procedimentos segundo a RDC nº 327 [9], que, se por um lado, asseguram certa segurança e a qualidade, criam também grandes obstáculos para o uso.


Uma das consequência dessa legislação sobre drogas é o alto preço dos medicamentos, causado pela necessidade de importação. Entretanto, existem ONGs criadas recentemente com o intuito de promover o acesso do medicamento às famílias de baixa renda e que, além disso, fomentam pesquisas. Um exemplo disso é a Abrace Esperança, que foi autorizada pela justiça, em 2017, para o cultivo e fornecimento dos derivados da cannabis. [10]


Outra iniciativa relevante é aquela planejada pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Nos planos da instituição, está prevista a criação de um centro de testes de cannabis, fruto de uma parceria interdisciplinar entre médicos, psiquiatras, psicólogos e químicos. Esse centro terá como objetivo realizar testes e certificar a qualidade de medicamentos à base de CBD. [11]


Além disso, a possível legalização da cannabis implicaria não apenas em avanços no campo medicinal, mas também em significativos ganhos econômicos. Pesquisas indicam que a legalização promoveria um aumento do emprego nos setores agrícola e comercial, impulsionados pela abertura desse novo mercado lucrativo. [12] Adicionalmente, estima-se uma arrecadação de R$8 bi em impostos no período de quatro anos após a legalização. [13]


Por todas essas razões, não podemos chegar à outra conclusão que não a inadequação da atual política de drogas para o trato dessas problemáticas.  Da segurança à saúde pública, a solução é a legalização.


“Me contem, me contem aonde eles se escondem

Atrás de leis que não favorecem vocês

Então por que não resolvem de uma vez?

Ponham as cartas na mesa e discutam essas leis”

Mantenha o respeito - Planet Hemp

 

Ana Carolina de Paula Simões

Gabriel Matheus Ferreira Santos


Referências


[1] GRIECO, Mario. Cannabis medicinal: baseado em fatos. Rio de Janeiro: Agir, 2021.


[2] Ibidem.


[3] Ibidem.


[4] Ibidem.


[5] Ibidem.


[6] FRIAS, Eduardo et al . O uso terapêutico do Canabidiol (CBD) em quadros de ansiedade e depressão: uma revisão bibliográfica. São Paulo: 2022. Disponível em: https://repositorio.animaeducacao.com.br/items/cda0f6ca-4a7a-430b-9127-cd1ff512b5a2. Acesso em: 14 maio 2024.


[7] VIEIRA, Maria. “Mães do canabidiol" lutam por remédio e contra o preconceito. Piauí, 2023. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/maes-do-canabidiol-lutam-por-remedio-e-contra-o-preconceito/#:~:text=As%20m%C3%A3es%20que%20lutam%20pelo,os%20outros%20dias%20das%20m%C3%A3es. Acesso em: 15 maio 2024.


[8]  ALTOÉ, Bruno. A trajetória no esporte e o uso de CBD em atletas.  Vitória, 2024. Entrevista concedida a Ana Carolina de Paula Simões. 


[9] BRASIL. Resolução da Diretoria Colegiada N 327. Diário Oficial da União, Poder executivo, Brasília, DF, 11 dez. 2019. Seção 1, p. 194. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-da-diretoria-colegiada-rdc-n-327-de-9-de-dezembro-de-2019-232669072. Acesso em 15 maio. 2024.


[10] Abrace Esperança. Disponível em: https://abraceesperanca.org.br/. Acesso em: 16 maio 2024.


[11] NUNES, Aline. Ufes planeja centro para desenvolver remédios e teste de canabidiol. A gazeta, 2024. Disponível em: https://www.agazeta.com.br/es/cotidiano/ufes-planeja-centro-para-desenvolver-remedios-e-teste-de-canabidiol-0524. Acesso em: 16 maio 2024.


[12] SÓTER, Cecília. Legalização da maconha aumenta oportunidades de emprego no setor agrícola. Correio Braziliense, 2023. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2023/01/5063489-legalizacao-da-maconha-aumenta-oportunidades-de-emprego-no-setor-agricola.html. Acesso em: 15 maio 2024.


[13] DIAS, Gabriel. Quanto o Brasil poderia arrecadar em impostos com a legalização da maconha? UOL, 2023. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/09/16/quanto-o-brasil-poderia-arrecadar-em-impostos-com-a-legalizacao-da-maconha.htm. Acesso em: 15 maio 2024.

 

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