Beleza e revolução: ideais opostos. Disponível em: <hhttps://medium.com/qg-feminista/beleza-e-revolu%C3%A7%C3%A3o-ideais-opostos-f31d7637ad41>. Acesso em: 28 ago. 2021
As olimpíadas de 2021 ilustraram grande representatividade feminina e diversos episódios ativistas, como foi o caso das ginastas alemãs que optaram por usar macacões de corpo inteiro em sua apresentação nas eliminatórias. Apesar de parecer uma simples decisão, as atletas demarcaram sua posição acerca da pauta, criado a fim da promoção da liberdade de escolha e de conforto, em detrimento à sexualização feminina, haja vista os collants tradicionalmente utilizados[1].
Dessa forma, é importante refletirmos: esse processo de sexualização do feminino é natural? Quais são as consequências desse olhar erótico acerca das mulheres? De onde surge essa mercantilização de mulheres, por que ela é voltada exclusivamente ao gênero feminino e, mais importante, quem se beneficia desta?
Inicialmente, vale destacar que a história de uma sociedade explica, em grandes proporções, as causas de situações presentes. Com isso, ao relacionar tal afirmação ao conteúdo desta resenha, não é exagero dizer que vivemos em uma sociedade machista, em que o homem detém poder sobre a mulher. Logo, o feminino não é individual, é posse e deve estar de acordo com as imposições de quem a possui, de acordo com o conceito de machismo apontado pelos estudantes Letícia Barbano e Daniel Marinho Cezar da Cruz, no artigo “Machismo, patriarcalismo, morte e a dissolução dos papéis ocupacionais”[2]. O sexo feminino entrou em peso no mercado de trabalho formal apenas durante a Segunda Gerra Mundial, ou seja, em um cenário de falta de mão-de-obra formal do sexo masculino[3]. A feminilidade ser vista como um objeto não é motivo de espanto, devido a uma sociedade patriarcal na qual mulheres não poderiam trabalhar fora de seus lares, votar, ter os seus direitos reprodutivos e, em resumo, ter autonomia em suas escolhas - ou seja, em uma sociedade que favorece o masculino.
A partir disso, a sociedade capitalista, visando o lucro, observou tais comportamentos sexistas e criou o que se conhece atualmente como “padrão estético”. Assim, muito do que se entende hoje por belo nada mais é do que um padrão social criado por uma indústria que lucra com a insegurança das mulheres, que na grande maioria dos casos é fruto da incapacidade de alcançar tais padrões. Logo, na medida em que a sociedade muda, o capital se altera, perpetuando a mesma lógica lucrativa. Exemplo claro disso é a mercantilização do corpo feminino, que pode ser ilustrado pelo conceito de celulite, antes visto como ‘inflamação do tecido celular ou laminoso’, de acordo com a 12ª edição do Dicionário de Medicina liderada por Littré e Robin. No entanto, entre as décadas de 1920 e 1930, o conceito de celulite se tornou político e econômico, a partir de estudos que diziam que a causa da celulite seria advinda de "sedentarismo, atitudes cansativas há muito mantidas, o neuroartritismo, trauma conjugal e, em virgens, distúrbios no ritmo da circulação útero-ovariana e secreções hormonais”, declaração do médico Eric Wetterwald em seu livro "O que é celulite?”. A problemática se inicia no instante em que a celulite se torna “a doença da moda”; os estudos não possuem profundidade suficiente segundo a socióloga Rossella Ghigi, os pesquisadores se contradizem e a indústria cosmética fomenta ideais como os do Dr. Wetterwald, uma vez que cremes, loções e diversos outros "cosméticos milagrosos” tornaram-se uma indústria bilionária[4] .
Dessa maneira, discursos de autocuidado são outro exemplo da pressão estética que mulheres sofrem diariamente, e que vem sendo cada vez mais romantizada. Durante a quarentena, cresceu nas mídias sociais a ideia do skin care, “cuidados com a pele” em tradução livre, que seria um momento de autocuidado inserido na sua rotina diária, baseado em usar diversos produtos para “melhorar” o aspecto da pele. Essa ideia é disseminada, em grande parte, por meio de influenciadores digitais e é direcionada principalmente às mulheres, as quais são, não só nesse aspecto, pressionadas a seguirem padrões estéticos irreais e irracionais. Até que ponto essa “moda do bem” é de fato um fruto do amor próprio, como se vende? É notável a incoerência nos discursos de autocuidado que se disseminaram na internet, já que muitas vezes eles servem como propaganda para produtos ditos "dermocosméticos"- um termo criado pela indústria cosmética, com a finalidade de inseri-los no mercado com mais facilidade, que legalmente não existe. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), existem apenas “medicamentos”, produtos com efeitos terapêuticos destinados ao tratamento ou recuperação da saúde de uma pessoa, e “cosméticos”, produtos de venda livre destinados à higiene pessoal, estética e cuidados com a pele sem efeito terapêutico[5]. Logo, não existe nenhuma regulamentação no Brasil que permita uma marca ser reconhecida como dermocosmética, sendo esse termo, então, apenas uma estratégia de marketing para aumentar a confiança entre o público alvo.
Diante do exposto, é possível depreender como os padrões de beleza estão interligados com a lógica capitalista e seu decorrer na história. Durante o Renascimento,[6] o padrão de beleza exaltado das mulheres era ter formas mais avantajadas e curvas voluptuosas, assim como é representado na pintura de Ticiano “Vênus de Urbino”[7]. Isso porque, naquele contexto em que faltavam tecnologias para conservar os alimentos, ter um corpo com acúmulo de gordura era sinônimo de estar em uma classe social elevada. Atualmente, não é incomum ouvir que “ninguém é feio, só é pobre” ou comparar fotos de famosos “antes e depois” de alcançarem a classe financeira mais elevada. Isso é semelhante à forma como as mulheres renascentistas eram consideradas belas por terem uma fortuna suficiente para se alimentarem bem o ano inteiro. Hoje os sex simbols ou "símbolos sexuais” são aqueles com dinheiro suficiente para se alimentar bem, praticar esportes, cuidar da pele e do cabelo, frequentar clínicas estéticas e consumir diversos produtos cosméticos. Introduzindo a questão da ideologia capitalista como o universo em que o corpo adquire seu atual significado, esse corpo atinge então o status de objeto de consumo no contexto da imposição da perfeição, direcionada principalmente às mulheres, o que é um sistema altamente lucrativo. A indústria cosmética brasileira, por exemplo, cresce ano após ano, e atingiu a marca de 29,62 bilhões de dólares de faturamento em 2019[8].
Ademais, o que temos é um fenômeno contemporâneo de supervalorização da beleza: a intensa busca por atender a padrões de beleza corporais. Assim, sujeita-se o corpo à exploração econômica da erotização e dos produtos embelezadores, que submete as pessoas a uma forma de poder controlador que se dá pelo controle-estimulação, de maneira a favorecer determinados comportamentos de consumo. Podemos enxergar isso claramente nas redes sociais, principalmente nos chamados publiposts, ou postagens de propagandas, utilizadas por marcas para divulgar seus produtos em perfis de influenciadores digitais. A partir disso, o que temos é a implementação de uma cultura consumista da perfeição por um amplo aparelho ideológico que perpassa as organizações familiares e tem seus desmembramentos mais visíveis nas ações enfáticas das mídias de massa. Conforme explica Fredric Jameson (2006),“[...] a economia veio a se sobrepor à cultura, de modo que tudo, incluindo a produção de mercadorias e as altas finanças especulativas, tornou-se cultural e que a cultura, analogamente, tornou-se profundamente econômica e orientada pela mercadoria”[9]. Abarcado pela lógica do sistema de capital, no qual os corpos são considerados mercadorias, a coisificação das mulheres é um traço cultural que enxerga o corpo feminino como um objeto externo, uma coisa que, por meio de suas propriedades, satisfaz necessidades de qualquer tipo.
Destarte, os impactos culturais resultantes da pressão social por um padrão estético inalcançável são inúmeros. Lipo LAD (Lipoaspiração de Alta Definição, também chamada de lipoaspiração HD), Lipoaspiração, toxina Botulínica (o famoso “Botox”), próteses de silicone, rinoplasti e, preenchimentos utilizando ácido hialurônico são apenas alguns exemplos de modificações corporais realizadas através de cirurgia plástica, feitas puramente com um objetivo estético a fim de suprir uma exigência sociocultural.[10] Além disso, vale destacar que distúrbios alimentares restritivos, como a anorexia e a bulimia, são mais comuns em mulheres[11], o que evidencia a disparidade de pressão estética sofrida por homens e mulheres. Segundo Adriano Segal, diretor de Psiquiatria de Transtorno Alimentar da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), a anorexia atinge 1% da população feminina mundial, enquanto que a bulimia chega a 5%, sendo a prevalência entre os homens de cinco a dez vezes menor que a incidência entre as mulheres Apesar de frequentemente serem vistas por muitos como banais, essas doenças, quando não tratadas, podem evoluir para casos graves. Entre 5% e 18% das pessoas com anorexia morrem, a bulimia pode evoluir para câncer no esôfago e a compulsão alimentar pode ser causa ou consequência da depressão, devido ao sentimento de culpa e angústia pós episódios compulsivos.[12]. Assim sendo, sobre a busca desenfreada pela perfeição dos corpos, a representação mental distorcida que diversas mulheres fazem de seus próprios corpos, a doutora Denise Bernuzzi de Sant’Anna constata: “Quando a saúde e a beleza são vistas como capitais, o trabalho de melhorar o estado físico torna-se infinito”[13].
Sendo assim, esse olhar erótico e esse padrão estético são considerados, por muitos estudiosos, uma manutenção do patriarcado, como na afirmação da socióloga Rosella Ghigi: “[...]desse ‘mito da beleza’, uma verdadeira estratégia midiática expressamente desenhada para preservar o poder dos homens diante da ascensão da independência econômica das mulheres e sua entrada no mundo”. Assim, é possível afirmar que a hipersexualização do feminino é um dos maiores propulsores da misoginia, uma vez que a necessidade por corpos perfeitos apenas ilustra um pretexto para a repulsa ao corpo feminino adulto, cenário esse que favorece a cultura da pedofilia.
A influência de uma sociedade capitalista e patriarcal reforça a compreensão de que a mulher ideal é aquela livre de pelos, rugas, celulites, marcas de expressão e diversas outras características que a diferenciam de uma criança[14]. Desse modo, a cultura da pedofilia, reforçada principalmente pela indústria pornográfica, somada a um padrão estético imposto, advém de uma sociedade que manipula mulheres a se parecerem e se comportarem como crianças, exemplo claro de tal afirmação se encontra no que se conhece na indústria cinematográfica por “male gaze” (olhar masculino, em tradução livre). O termo, popularizado pela crítica de cinema Laura Mulvey em 1975, que faz referência a perspectiva masculina acerca de personagens femininas, voltou a ser pauta na internet com o lançamento do filme “Aves de Rapina”, dirigido por Cathy Yan. A diretora sino-americana, escolheu retratar a personagem Arlequina de forma explicitamente contrária a versão idealizada e dirigida por David Ayer em “Esquadrão Suicida”, no qual a mesma era hipersexualizada e infantilizada por meio de cenas em que o foco desta era exclusivamente voltado a sua aparência, diferente da obra dirigida por Yan, que trouxe empoderamento, moda e maturidade à personagem[15].
Assim, o capital é gerado, muitas vezes, a partir da literal mercantilização de imagens e corpos. Além da manipulação midiática que busca vender produtos ditos por femininos a partir de uma alienação que faz mulheres julgarem tais produtos imprescindíveis, tem-se a venda destes por meio de imagens positivas e de diversidade. Na comunidade LGBTQIAP+ o fenômeno é conhecido por "Pink Money", mas isso ocorre com diversas minorias, uma vez que uma empresa que expõe um caráter diverso em termos de gênero tem 33% a mais de chances de lucro do que uma empresa que não usa dessa fachada, segundo a consultoria americana Mckinsey.[16] Para muitos esse apoio às minorias é motivo de visibilidade, mas a que custo? Mulheres seguem com salários proporcionalmente menores e com alegações de assédio no local de trabalho, o que comprova o oportunismo de empresas que, aos olhos do público, se mostram feministas quando, na realidade, negligenciam as próprias funcionárias. Sendo assim, é possível ilustrar que o capitalismo é mercantil, o padrão feminino é vendido para, além do lucro, uma manutenção do patriarcado e, por isso, movimentos como o feminista são tão importantes a uma sociedade como a contemporânea.
Maya Pavan Nicole Sansoni
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
[1] CNN. Olimpíadas: Contra sexualização, ginastas alemãs usam roupas de corpo inteiro. 2021. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/olimpiadas-contra-sexualizacao-ginastas-alemas-usam-roupas-de-corpo-inteiro/>. Acesso em: 20 ago. 2021.
[2] BARBANO, Letícia; MARINHO, Daniel. MACHISMO, PATRIARCALISMO, MORAL E A DISSOLUÇÃO DOS PAPÉIS OCUPACIONAIS. Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, v.3 n.1, p.159-165. ISSN: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=4979/497950367006 . Acesso em: 22 ago. 2021.
[3] QUERINO, Luciane; DOMINGUES, Mariana; LUZ, Rosangela Cardoso da. A EVOLUÇÃO DA MULHER NO MERCADO DE TRABALHO. Revista dos Discentes da Faculdade Eça de Queirós, Jandira, v. 2, n. 2, p. 1-32, ago. 2013. Acesso em: 20 ago. 2021.
[4] GHINI, Rossella.Le corps féminin entre science et culpabilisation. Travail, genre et sociétés. 2004. v .2, n. 12, p. 55-75. DOI : 10.3917/tgs.012.0055. . Acesso em: 26 ago. 2021.
[5] Luciana Vilela. Cosmético ou dermocosmético – qual a diferença? 2017 Disponível em: <https://www.mulhersemphotoshop.com.br/2017/11/cosmetico-dermocosmetico.html>. Acesso em: 22 ago. 2021.
[6] Padrão de beleza: um olhar colonizado sobre corpos femininos. Disponível em: <https://medium.com/revista-brado/mulheres-padr%C3%A3o-de-beleza-um-olhar-colonizado-sobre-corpos-femininos-a696957a4288>. Acesso em: 23 ago. 2021.
[7] Vênus de Urbino. Disponível em: <https://g.co/kgs/mQ5Mtp>. Acesso em: 25 ago. 2021.
[8] O surpreendente mercado de beleza no brasil e seu público. Disponível em: <https://negociossc.com.br/blog/o-surpreendente-mercado-de-beleza-no-brasil-e-seu-publico>. Acesso em: 25 ago. 2021.
[9]JAMESON, F. Pós-modernismo e sociedade de consumo. Em: JAMESON, F. A virada cultural: reflexões sobre o pós-moderno(p.127-128). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006a.
[10] O PREÇO DA PERFEIÇÃO. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/10u8u2IPuIzzn5bUNmp_fSegM5SDrkUpi/view?usp=drivesdk>. Acesso em: 28 ago. 2021.
[11]Busca por padrões estéticos pode levar a distúrbios alimentares. Disponível em: https://www.medicina.ufmg.br/busca-por-padroes-esteticos-pode-levar-a-disturbios-alimentares/ >. Acesso em: 28 ago. 2021.
[12] A anorexia e a bulimia já atingem 1% e 5% das mulheres no mundo. Disponível em: <https://www.google.com.br/amp/s/www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2009/07/09/interna_ciencia_saude,125004/amp.shtml>. Acesso em: 28 ago. 2021.
[13] Entrevista com Denise Bernuzzi de Sant’Anna. Disponível em: https://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&tipo=entrevista&edicao=15 >. Acesso em: 28 ago. 2021.
[14] Cultura da pedofilia: A realidade por trás do padrão da estética feminina. Disponível em: <https://esquerdaweb.com/cultura-da-pedofilia-a-realidade-por-tras-do-padrao-da-estetica-feminina/>. Acesso em: 28 ago. 2021.
[15] Como o olhar feminino fez diferença para Arlequina e Mulher-Maravilha. Disponível em: <https://www.omelete.com.br/dc-comics/arlequina-aves-de-rapina-mulher-maravilha-olhar-feminino>. Acesso em: 28 ago. 2021.
[16] Diversidade é aposta das empresas para retomada competitiva no pós-pandemia. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/para-alem-do-pink-money-apostar-na-diversidade-melhora-qualidade-da-retomada/> . Acesso em: 6 set. 2021.
Texto simplesmente incrível. As questões estéticas passaram a ser herdadas por nós como hábitos, coisas que aderimos sem muita reflexão pela própria convivência em sociedade, ou como dizemos na História, herdamos pelo tempo da longa duração. Esses elementos e costumes que herdamos geralmente são isentos da nossa reflexão, o que acabou me chamando muita atenção a questão do "skin care"/produtos cosméticos. Desde quando é errado termos espinhas? Desde quando é errado termos pelos? Se são erradas(os), por que naturalmente temos? São concepções que aderimos inconscientemente e muitas vezes não refletimos sobre elas. O capitalismo perturba nossa própria natureza e nossa concepção do que é de fato natural e essencial para viver, tudo em detrimento do lucro. Infelizmente as mulheres são…