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A arte como reflexo da realidade material



The story of Mexico. Disponível em: https://smarthistory.org/mexico-diego-rivera-murals-national-palace/ Acesso em: 12 out. 2023.

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Não é de hoje que nos perguntamos se é a vida que imita a arte ou a arte que imita a vida. É evidente que elas estão diretamente conectadas em um movimento dialético[1]- que será explorado nesta resenha a partir de uma perspectiva extremamente contemporânea: quais são as formas como esta arte representa a realidade material econômica mais imediata à sociedade?


Essa relação entre a realidade objetiva e sua representação pela arte e pelas ciências foi inicialmente vista como um problema de reflexão por Platão e Aristóteles na Grécia Antiga. Suas contribuições foram responsáveis pelo surgimento da estética - a área que estuda o belo.


No período de sua origem, a estética enxergou e interpretou “como uma atividade que manifesta a beleza sensível, aparente e ilusória do real, o belo estético, sendo, portanto, oposta ao conhecimento científico da verdade, compreendido como uma certeza inteligível, essencial e efetiva do que as coisas são”[2]. Tal perspectiva é resultado do caráter fetichista da produção de significações, ou seja, da não percepção dessas enquanto resultado do trabalho humano para a compreensão do mundo. As ciências de modo geral e as artes têm muito mais em comum do que se observa na aparência.


O que difere os resultados dessas significações e abstrações da realidade são suas ferramentas, não seus pontos de partida. Sendo assim, uma produção do saber científico-econômico pode ter o mesmo ponto de partida das produções populares do saber. Ambas são resultados do trabalho, que tentam abstrair a realidade e compreendê-la. No entanto, apenas uma é legitimada enquanto produção do trabalho consciente.


Na sociedade contemporânea, em que as ditas ciências econômicas aparecem como ferramentas técnicas (imparciais e não ideológicas) de gestão de recursos escassos, a arte pode ter o caráter revolucionário de evidenciar as contradições desta outra forma de significação. E, para além de evidenciar estas contradições, a arte pode ter o papel de demonstrar um horizonte de possibilidades. Algo que ultrapasse a objetividade positivista das “águas gélidas do cálculo egoísta”[3] das ciências econômicas enquanto ferramenta exclusiva do capital.


Embora a arte seja dotada de tal potência, estudiosos da “era da reprodutibilidade técnica” da arte[4] observaram que, dentro do modo de produção capitalista, a mesma tem cumprido o papel de alienar, de servir como uma ferramenta do capital e da ideologia dominante na formação de uma “falsa consciência”[5] das massas. Essa falsa consciência seria dotada de atenuar as contradições do capitalismo e servir de produto para a sua própria lógica de produção e reprodução.


Neste sentido, as contribuições do filósofo György Lukács em sua teoria dos reflexos servem de instrumento para a compreensão da disputa pelos sentidos entre a arte e a ciência enquanto ferramentas do capital, e ambas enquanto armas revolucionárias. Lukács demonstra que tanto as ciências quanto as artes, no capitalismo, tendem por passar pelo processo de superficialidade: de produzirem significados acerca do fenômeno, ignorando (não de forma consciente) a essência.


Neste sentido, Lukács aponta que: “A forma científica é tanto mais elevada quanto mais adequado for o reflexo da realidade objetiva que oferecer, quanto mais universal e compreensiva, quanto mais superar ou deixar para trás a imediata forma fenomênica sensivelmente humana da realidade, tal como esta se apresenta cotidianamente”.[6]


O exame atento do fenômeno artístico e do fenômeno científico-econômico na contemporaneidade, na sociedade do consumo, é o ponto de partida para suas superações enquanto ferramentas de alienação, enquanto ferramentas da classe dominante. Somente assim a compreensão de suas respectivas funções históricas enquanto armas populares revolucionárias poderá ser alcançada.


Como exemplos dessa tentativa de compreensão crítica e revolucionária, podemos citar Muniz Sodré (1979) categorizou o samba do pós-abolição como crônica do Rio de Janeiro[7], ou seja, como ferramenta de produção de sentidos de um grupo específico (negros e negras). Panna Nawar (2022) faz a aproximação do rap da década de 90 como uma ferramenta libertadora da educação. Frantz Fanon (1961) aborda a cultura do colonizado como uma ferramenta de resistência e luta, apontando que “na dança, no canto melódico, nos ritos, nas cerimônias tradicionais” poder-se-á observar a ebulição popular: “Tudo concorre para despertar a sensibilidade do colonizado, para tornar inatuais, inaceitáveis, as atitudes contemplativas ou de derrota [...] o colonizado reestrutura sua percepção. O mundo perde seu caráter maldito. Estão reunidas as condições para o inevitável confronto”[8].


Na contramão deste movimento, observa-se também o caráter da arte enquanto ferramenta alienante. Atualmente, diversos aspectos nocivos da estrutura social são retratados e legitimados em diversos campos artísticos, desde músicas até obras cinematográficas. Nesse sentido, obras musicais que exaltam características nocivas do agronegócio brasileiro, por exemplo, ganharam bastante popularidade em plataformas de aúdio e nas mídias sociais. A título de exemplo, é possível citar a música “Colonão”, da dupla Adson e Alana, lançada no ano de 2021 e que no presente conta com 34 milhões de visualizações na plataforma Youtube. Na letra da música, o eu lírico busca enfatizar que os ganhos materiais provenientes do setor agropecuário brasileiro são superiores aos bens materiais desejados pela população urbana. No entanto, em versos da canção existe uma exaltação ao lançamento de defensivos agrícolas (popularmente conhecidos como agrotóxicos) nas plantações brasileiras, com o seguinte trecho: “[...} Eu disse ão-ão-ão passa o veneno de avião”[9].


Além da questão ambiental, ao longo do século XX, diversas obras artísticas lançadas reforçam chagas sociais presentes na estrutura social brasileira, como machismo e violência contra a mulher. Um exemplo notório é a música Maria Chiquinha, extremamente popular na década de 1990. Após diversas críticas, intérpretes da música evitam cantar alguns de seus trechos que poderiam remeter a violência contra a mulher. Da mesma forma, além das melodias, a literatura brasileira também apresentou obras populares que supostamente legitimaram crimes, entre eles, o racismo. Obras do escritor Monteiro Lobato, autor este do clássico livro infantil “Sítio do Picapau Amarelo”, sofreram atualizações para a retirada de trechos que continham frases com conotações racistas[10].


Outrossim, analisando em um plano internacional, obras artísticas também são utilizadas para legitimar estruturas nefastas da sociedade contemporânea. No filme “E o vento levou…”, ganhador do Oscar de melhor filme em 1939, existe uma série de críticas a diversas cenas do filme que naturalizam o caráter racista vigente nos Estados Unidos durante a Guerra da Secessão, período em que o filme é retratado,. As diversas críticas direcionadas ao longa-metragem fizeram com que a HBO, detentora de seus direitos, retirasse o filme de seu catálogo[11].


Assim, múltiplas obras que legitimam estruturas vigentes da sociedade capitalista são produzidas e divulgadas para o consumo em massa. E obras que, a priori, poderiam servir como ferramenta de crítica a essas estruturas, acabam se tornando apenas produtos mercantilizados que geram uma legitimação do status quo.


Por fim, entende-se que as condições materiais objetivas, a ciência da escassez e a cultura podem cumprir tanto o papel emancipador quanto alienante - e justamente aí se encontra a possibilidade revolucionária tanto da ciência econômica quanto da arte. Parafraseando Fanon: “O primeiro dever do poeta colonizado é determinar claramente o tema do povo de sua criação. Só podemos avançar resolutamente se primeiro tomamos consciência de nossa alienação.”[12]

Edinaldo Pereira dos Santos Júnior

Matheus Ferreira Maia

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REFERÊNCIAS:

[1]

[2] Pessoa. F. Arte e verdade no pensamento de Nietzsche. 2015. Disponível em:

[3] Marx, K. Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, 2015. p.42. Boitempo Editoral.

[4] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. L&PM Editores, 2018.

[5] Aqui adotamos a definição marxista de falsa consciência, ou seja, a que entende que “A falsa consciência diz respeito ao conjunto de ideias que constitui o reflexo, na consciência, de uma realidade que, em si mesma, se movimenta de maneira contraditória e se apresenta de maneira invertida.” Baldi, Luiz Agostinho de Paula. A categoria ideologia em Marx e a questão da falsa consciência. Revista Katálysis, v. 22, p. 631-640, 2019.

[6] LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxista: sobre a particulariade como categoria da estética. Civilização Brasileira, 1970. p.170.

[7] SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. p.45 [1 ed. – 1979]

[8] Fanon, Frantz. Os condenados da terra. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2022.

[9] Letras. Colonão. Disponível em: https://www.letras.mus.br/adson-alana/colonao/ . Acesso em: 12 out. 2023.

[10] LOBATO, Cleo. Obras de Monteiro Lobato passam por atualização após acusações de racismo. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/obras-de-monteiro-lobato-passam-por-atualizacao-apos-acusacoes-de-racismo . Acesso em: 12 out. 2023.

[11] HBO Max retira ‘E o Vento Levou’ do catálogo por falta de ‘contexto histórico’. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/hbo-max-retira-e-o-vento-levou-do-catalogo-por-falta-de-contexto-historico/ . Acesso em: 12 out. 2023.

[12] Fanon, F .Idem. Ibidem.

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