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O CINEMA BRASILEIRO ENTRE A SOBERANIA E A SUBORDINAÇÃO

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    PET Economia UFES
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SIQUEIRA, Cristiano. Ilustração do Atlas do Cinema Brasileiro. Revista Monet, ed. 176, nov. 2017. Imagem. Disponível em: https://acesse.one/Z42Bs. Acesso em: 28 ago.


A formação do cinema brasileiro, em verdade, corresponde ao desenvolvimento histórico de uma mercadoria cultural, cujas especificidades são constituídas social e historicamente no bojo das relações sociais propriamente capitalistas de produção. É válido notar, ainda, que não se trata de um capitalismo qualquer; trata-se de um capitalismo sui generis: o capitalismo periférico. Subsumida à lógica de valorização do valor, a produção artística esvazia-se como produto de um processo orgânico em que um indivíduo imprime, artisticamente, sua relação com sua exterioridade e interioridade, por intermédio dos múltiplos recursos estéticos que dão vida às suas experiências e percepções sobre a realidade social e histórica em que está inserido. No modo de produção capitalista, a criatividade do fazer artístico deve ser disciplinada, a fim de que a arte seja socialmente reconhecida como valor de troca. Assim, a história do cinema nacional, sob o capitalismo, não pode ser dissociada da lógica do capital e do imperialismo.


O alvorecer do nosso cinema remonta ao início do século XX, o qual foi marcado por filmes mudos produzidos nacionalmente. Porém, por conta da consolidação de Hollywood e da eclosão da Primeira Guerra Mundial, os padrões estéticos do cinema mundial foram homogeneizados e os equipamentos encareceram, impossibilitando a produção de filmes nacionais e, portanto, favorecendo a entrada massiva de filmes estrangeiros nas salas de cinema do Brasil [1]. Mais adiante, Getúlio Vargas instituiu um decreto [2] que visava fomentar a produção de filmes nacionais por meio de incentivos fiscais e da obrigatoriedade de exibição dessas obras nos cinemas do país, ao passo que enquadrava a produção cinematográfica brasileira aos planos políticos do Governo Provisório. Somado a isso, a criação da Atlântida Cinematográfica foi imprescindível para a formação de público do nosso cinema, uma vez que foi o estúdio responsável pela popularização das “chanchadas” - produções populares que emulavam filmes norte-americanos famosos.


Em seguida, já na década de 1960, ocorreu o advento do movimento cinematográfico mais importante do Brasil: o Cinema Novo, o qual almejava construir uma cinematografia de fato brasileira, expondo as contradições de um país de capitalismo periférico. Seu despertar deu-se pelo filme “Cinco Vezes Favela” (1962), dirigido por vários membros do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). O Cinema Novo produziu uma série de clássicos e, além disso, uma gama de verdadeiros diretores-pensadores que se lançaram sobre o debate da condição de subdesenvolvimento do país. Nesse sentido, Glauber Rocha, principal expoente do movimento e diretor do grande clássico “Deus e Diabo na Terra do Sol” (1964), expôs, em seu manifesto “Uma Estética da Fome” [3], de 1965, suas principais ideias sobre o Cinema Novo, considerando-o uma alternativa revolucionária frente à letargia das instituições burguesas.


Outro texto canônico de Glauber Rocha é o manifesto “Uma Estética do Sonho” [4], de 1971, em que suas argumentações se aproximam da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. O diretor sintoniza o artista de terceiro mundo como um rebelde que não deve se sujeitar à homogeneidade estética imposta pelo imperialismo e seus sistemas culturais. Sendo assim, o cinema brasileiro se tornaria realmente livre se buscasse, de maneira autônoma, seus próprios padrões criativos. Contudo, com a inviabilidade de financiamento e a repressão intensificada pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), o Cinema Novo se diluiu [5]. Paralelamente, ao final da década de 1960, emergia o Cinema Marginal, que propunha uma fusão de características cinemanovistas com o Tropicalismo [6]. A masterpiece desse movimento é “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), de Rogério Sganzerla - considerada uma das principais obras da história do cinema brasileiro.


Seguindo o fluxo da história, em 1969, foi fundada a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme S.A.) [7], a qual, a partir da década de 1970, se tornou um elemento sine qua non para financiamento e distribuição de filmes nacionais. A empresa estatal carregava o sonho de uma indústria cinematográfica pulsante no país, sendo, inclusive, diretamente responsável pela gênese de grandes títulos da década de 1980, como “Eles Não Usam Black-Tie” (1981), de Leon Hirszman. No entanto, as políticas neoliberais do governo Collor, no início dos anos 1990, fizeram os planos de desenvolvimento cinematográfico brasileiro escorrerem feito lágrimas - o preço dos ingressos subiu e a Embrafilme foi extinta [8]. O resultado dessas trágicas decisões foi um verdadeiro “apagão” da produção de filmes nacionais [9].


Nesse ínterim, o cinema brasileiro só voltou a formar público na segunda metade da década de 1990, com a célebre “Retomada”, em que as produções incorporaram padrões estéticos estadunidenses e passaram a visar projeção internacional nas grandes premiações, como Oscar e Cannes, o que desmobilizou o projeto de um cinema nacional soberano. Foi nesse contexto que “Central do Brasil” (1998), de Walter Salles, surgiu. Na sequência, por meio de uma medida provisória de 2001 [10], foi criada a Agência Nacional de Cinema (Ancine) e outras políticas públicas que asseguram o desenvolvimento institucional do cinema no país, embora aprofundem a estética e a lógica de subordinação cultural da Retomada. Inaugurou-se, assim, o movimento de “Pós-Retomada”, no qual se insere “Ainda Estou Aqui” (2024), também de Walter Salles.


Historicamente, a subordinação das expressões artísticas nacionais e internacionais à lógica capitalista se intensifica a partir da fase monopolista do capital. Existe, desde então, um fenômeno em que a geração do conteúdo ideológico deixa de ser orgânica, e passa a ser deliberada, o que promove uma nova relação entre cultura e sociedade. Trata-se da constituição de uma relação marcada pela supressão da liberdade relativa e da capacidade de pensar autonomamente por parte dos indivíduos, na medida em que a organicidade das expressões artísticas dá lugar à racionalização do desenvolvimento das produções culturais. Segundo Musse (2021), neste período, o processo de produção cultural torna-se um processo de produção de mercadoria em seu sentido mais pleno [11].


No capitalismo, portanto, tem-se que o fazer artístico apresenta caráter dialético: ele necessariamente atravessa uma relação dialógica entre o artista e as estruturas sociais que permeiam sua realidade, e, ao mesmo tempo, busca desprender-se de uma relação orgânica com seu substrato material na medida em que busca fazer-se sob os parâmetros racionais e técnicos impostos pela primazia do valor de troca [12]. O desenvolvimento da cultura, no capitalismo, atravessa um processo de negação de si mesma. E, no Brasil, país da periferia capitalista, o processo de tornar o cinema uma mercadoria atravessa não só um processo de negação da cultura nacional, mas também a importação de estéticas e narrativas culturais produzidas pelo país hegemônico, cujo poder político e econômico encontra capilaridade e reafirmação em padrões artísticos que colonizam, até hoje, a cultura periférica.


O processo de mercantilização da cultura e da imposição cultural imperialista ganha contornos específicos no contexto brasileiro. No Brasil, as salas de exibição concentram-se em grandes centros urbanos, quase sempre vinculadas a shopping centers. O preço dos ingressos no Brasil é um dos mais caros no mundo [13], e, por sua vez, torna o cinema uma prática cultural seletiva, inacessível para grande parte da classe trabalhadora. Trata-se, então, de uma estrutura que reforça a exclusão social: na medida em que a produção cultural é mercadoria, só pode ser usufruída plenamente por quem dispõe de recursos suficientes para acessá-la. Trata-se de um processo em que, mesmo o cinema nacional que se propõe a dialogar com as classes populares, não se torna popular. E, mais do que isso, cerceia o potencial reflexivo e crítico provocado pelas produções artísticas.


Ao longo do desenvolvimento do cinema nacional, foram diversos os movimentos cinematográficos que buscaram retratar a complexidade cultural, política, econômica e social brasileira, por meio de estéticas nacionalmente construídas e a partir da realidade que atravessa violentamente a vida dos cidadãos brasileiros: a fome, a miséria, a desigualdade social, a racialização dos corpos. A busca pela soberania da arte brasileira, no entanto, padece não só da sua inserção na lógica capitalista de produção cultural, mas da sua inserção subordinada à produção cultural no capitalismo global. E, no contexto do Brasil, o cinema não é só uma mercadoria, mas é uma mercadoria da qual somente as camadas mais abastadas da população usufruem plenamente.


Danilo Albertino

Gabriela Morozini

  1. RICHTER, Caroline de Araujo. Pós-retomada e O Cheiro do Ralo: ressentimento do cinema brasileiro. 2025. Dissertação (Mestrado em Letras) - Programa de Pós-Graduação em Letras, Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2025, p. 14. Disponível em: lume.ufrgs.br/handle/10183/293782. Acesso em: 3 ago. 2025.


  2. BRASIL. Decreto no 21.240, de 4 de abril de 1932. Nacionaliza o serviço de censura de filmes cinematográficos em todo o território nacional e dá outras providências. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, [2025]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21240-4-abril-1932-515832-publicacaooriginal-81522-pe.html . Acesso em: 26 ago. 2025.


  3. ROCHA, Glauber. Uma estética da fome. Vermelho, 2011. Disponível em: vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/l. Acesso em: 26 ago. 2025.


  4. ROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho. Hambre Cine, 2013. Disponível em: hambrecine.com/2013/09/15/eztetyka-do-sonho/. Acesso em: 26 ago. 2025.


  5. RICHTER, 2025, p. 17.


  6. Tropicalismo, ou Tropicália, foi um movimento dos anos 1960 que uniu popular e

    vanguarda, nacional e estrangeiro, propondo uma nova visão da cultura brasileira.


  7. FILME B. Breve histórico do cinema brasileiro. [S. l.], 2016. Disponível em: www.filmeb.com.br/database2/html/historico01.php. Acesso em: 27 ago. 2025.


  8. RICHTER, 2025, p. 20.


  9. NAGIB, Lúcia; SOUSA, Ricardo L. de; BRANDÃO, Adriana S. Introduction to the dossier: Brazilian cinema in the neoliberal age (O cinema brasileiro na era neoliberal). Aniki: Portuguese Journal of the Moving Image, v. 5, n. 2, p. 306-310, 2018. Disponível em: aim.org.pt/ojs/index.php/revista/article/view/473. Acesso em: 27 ago. 2025.


  10. BRASIL. Medida provisória no 2.228-1, de 6 de setembro de 2001. Estabelece princípios gerais da Política Nacional do Cinema... Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 set. 2001. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/2228-1.htm. Acesso em: 26 ago. 2025.


  11. MUSSE, Ricardo. Cultura e sociedade na primeira Teoria Crítica. Tempo Social, São Paulo, v. 33, n. 2, p. 267-288, maio/ago. 2021. Disponível em: www.scielo.br/j/ts/a/MGnqLzRmTkjQd3Dkzsj8TKf/. Acesso em: 4 ago. 2025.


  12. Ibidem, p. 281.


  13. Fundação Getulio Vargas (FGV). Ingresso de cinema no Brasil é um dos mais caros do mundo, aponta pesquisa da Escola de Economia de São Paulo. 15 fev. 2013. Portal FGV. Disponível em: https://portal.fgv.br/noticias/ingresso-cinema-brasil-e-mais-caros-mundo-aponta-pesquisa-escola-economia-sao-paulo. Acesso em: 28 ago. 2025.




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