Grande queima Disponível em: <http://www.genildo.com/2019/08/grande-queima.html>. Acesso em: 30 jun. 2022
Como se o universitário já não tivesse um dia livre de estresse, trabalho e recorrentes cortes de verba às suas instituições de ensino[1], notificou-se, recentemente, nas mídias sociais e jornalísticas, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 206/2019: uma moção por mensalidade nas universidades federais. Esta é de autoria do deputado federal General Peternelli (União Brasil/SP) e, baseada em um relatório feito pelo Banco Mundial em 2017[2], teria finalidade de inserir em nossa Constituição uma emenda para dispor sobre a cobrança de mensalidade nas universidades públicas.
Em recentes debates na Câmara dos Deputados, o General Peternelli e seus aliados, como o deputado Kim Kataguiri (União Brasil/SP), explicaram seus pontos de vista e os motivos por trás da PEC. No primeiro ponto, a cobrança de alunos de comprovada baixa renda, não seria feita. Aqueles que pagariam, a mensalidade serviria para custear as despesas discricionárias das instituições, como água, luz e energia. Em segundo, caracterizam o ensino básico público brasileiro como desigual: “Não seria correto que toda a sociedade financie o estudo de jovens de classes mais altas”[3]. De acordo com eles, a grande maioria dos alunos que adentram instituições federais de ensino são de renda mais elevada. E por fim, em terceiro, há o argumento que o gasto brasileiro na educação superior é muito alto em comparação com países como Espanha e Itália, onde a experiência da mensalidade em outros países se mostrou proveitosa.
O projeto coloca em questão o artigo 206 da Constituição, que garante gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, ameaçando então um direito de cada cidadão brasileiro. O assunto dividiu opiniões públicas, enquadrando-se em um exemplo de ato que fomenta o crescente debate polarizado entre defensores de políticas econômicas de esquerda e direita que têm tomado conta do país nos últimos anos. Entretanto, a proposta não é inédita e tem seus ecos na ideologia neoliberal que vem ganhando espaço no país desde a década de 1990, como pontuam Luciana Canavez e Paulo Henrique Donadeli, em um artigo acerca da gratuidade do ensino superior. Os autores relatam o ano de 2003, quando foi apresentada, no Congresso Nacional, a PEC 217/2003. Nela, discorria-se a necessidade de novas fontes de financiamento e contribuições para as instituições federais, com a justificativa de reduzir a desigualdade de ensino e gerar mais infraestrutura e empregos dentro das universidades com o seu consequente desenvolvimento[4]. A emenda encontrou resistências na sociedade, sendo arquivada em 2007. Nota-se, então, que os problemas com o financiamento do ensino público superior são ressaltados há muitos anos, refletindo-se nas justificativas tanto da PEC 217 tanto na PEC 206, que é a de destaque atual.
Uma emenda que disserta sobre a necessidade de ajuda direta para o custeio de uma organização federal é preocupante. Os cidadãos já pagam impostos direcionados à educação e estes deveriam ser suficientes para custear uma infraestrutura básica aos estudantes do país. Paulo Meyer Nascimento, economista e estudioso de modalidades de financiamento do ensino superior, entende que o ensino superior público necessita de investimentos, porém, ressalta que a cobrança dos alunos não é uma boa opção, pois cria barreiras financeiras ao estudante. Uma possível medida, de acordo com o economista, deveria caminhar aos moldes de um modelo de cobrança diretamente pela Receita Federal, como é feito de forma semelhante em países como Nova Zelândia, Hungria e Uruguai[5].
A comparação com países desenvolvidos sobre o funcionamento e dinâmica do gasto e arrecadação governamental deve ser feita com bastante cuidado. As reformas fiscais, como foi proposto por Meyer, servem de inspiração a um método que se adequa às particularidades econômicas do país; já a comparação de valores nominais de quanto cada país gasta, não leva em consideração uma conjuntura de fatores estruturais e sociais. De exemplo, a comparação de gastos na educação no Brasil com a Alemanha: o Brasil gasta cerca de 5% do PIB anual em gastos na educação versus 4% da Alemanha, entretanto, o PIB brasileiro é muito menor que o alemão, sendo o PIB per capita do primeiro cerca de US$6,800.00 e o segundo US$45,700.00. Apesar da porcentagem brasileira ser 1 p.p maior, os valores reais precisam, novamente, serem analisados com cautela[6]. Deve-se observar também que no ano corrente o fundo eleitoral beira os 5 bilhões de reais, tendo aumentado em 200% em relação à previsão inicial de custo, sendo o maior fundo já criado[7]. Isto é contraditório, principalmente diante a má distribuição de fundos de um governo que prioriza mais a corrida eleitoral do que a educação.
A ideia de cobrar mensalidade apoiando-se na concepção de que “a maioria dos estudantes que frequentam as universidades públicas são de famílias mais ricas", como afirmou o General Peternelli, também é inconsistente. Cerca de 70% dos estudantes tem renda familiar per capita de até 1,5 salários mínimos, e 64,7% frequentaram escolas públicas, como mostra a pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) em 2018[8]. Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) afirma que a proposta da PEC 206/2019 é desatualizada, pois a Lei de Cotas foi um fator essencial para a entrada e inserção de alunos pretos, pardos e indígenas (PPI), baixa renda e pessoas com deficiência (PCD), mudando drasticamente o perfil da universidade[9]. Ribeiro também considera a tamanha complexidade das diferentes situações econômicas dos estudantes; o sistema de cobrança seria burocrático e com retornos inexpressivos[10].
A proposta da PEC 206/2019 não levou em consideração ou sequer propôs o debate com aquela que será diretamente afetada: a comunidade universitária[11]. Marcus Vinicius David, reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), ponderou que as faculdades públicas têm caráter social e que não basta apenas um estudo do Banco Mundial, mas sim uma série de análises para responder como essa cobrança seria feita ou quais parâmetros seriam definidos. O reitor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Paulo Vargas, em nota de repúdio, considerou que a gratuidade do ensino brasileiro é o que promove um fator de qualificação exímio para a população[12].
Assim, não bastasse os cortes que a ciência vem sofrendo nos últimos anos[13], a proposta da PEC 206/2019 sequer leva em consideração os diversos fatores problemáticos que a mesma carrega ao se basear em informações levianas e ilusórias. Parece piada de mau gosto uma proposta que visa a supressão de um direito constituído em 1988, que garantiu e gerou alunos e pesquisadores brilhantes e que abriu, e continua abrindo, portas para diversas contribuições científicas para o país.
A universidade pública permite a formação científica e o desenvolvimento humanístico, gera oportunidades para ascensão social e é o alicerce para pesquisa e extensão por todo o país. O posicionamento a favor da sua permanência e gratuidade é necessário e não pode ceder a pressões eleitoreiras que vão contra os valores educacionais e inclusivos que a ela luta para a manter mesmo em tempos conturbados. Lute pelo seu direito, lute pela educação gratuita, pública e de qualidade.
Daniel de Almeida Bahiense
Maria Luiza Moura Patricio
Resenha Econômica é uma publicação do Programa de Educação Tutorial - PET/SESu - do Curso de Ciências Econômicas, com resumos de comentários ou notícias apresentados na imprensa. As opiniões aqui expressas não refletem necessariamente a posição do grupo a respeito dos temas abordados. Qualquer dúvida sobre as atividades do PET escreva para: peteconomiaufes@gmail.com.
[1] Com corte no orçamento, 88% das universidades federais têm prejuízos, diz Andifes. 2022. Disponível em: https://bit.ly/3yfuTGZ Acesso em: 27 de jun. 2022.
[2] Um Ajuste Justo - Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil. 2017 Disponível em:https://www.worldbank.org/pt/country/brazil/publication/brazil-expenditure-review-report Acesso em: 27 de jun. 2022.
[3] PEC 206 quer cobrar mensalidade em universidade pública; entenda o que mudaria. 2022 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/pec-206-quer-cobrar-mensalidade-em-universidade-publica-entenda-o-que-mudaria/ Acesso em: 28 de jun 2022.
[4] DONADELI, Paulo Henrique Miotto ; CANAVEZ, L. L. . A gratuidade do ensino superior nas universidades públicas e a tutela do direito ao acesso à educação superior. 2016 Disponível em : https://bit.ly/3Anijbk Acesso em: 25 de jun 2022..
[5] Universidades públicas repudiam PEC que propõe cobrança de mensalidades. 2022 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/universidades-publicas-repudiam-pec-que-propoe-cobranca-de-mensalidades/ Acesso em: 27 jun. 2022.
[6] Por que é enganoso falar que o “Brasil gasta muito com educação”?
[7] STF mantém valor de R$ 4,9 bilhões para o fundo eleitoral de 2022. Disponível em:
https://bit.ly/3yIzdQg Acesso em: 29 de jun. 2022.
[8] V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das IFES. Disponível em: https://www.andifes.org.br/?p=88796 Acesso em: 29 jun. de 2022.
[9] Nós temos um podcast falando sobre este assunto, confira em nosso Spotify.
[10] Mensalidade na universidade pública? O que está em debate no Congresso. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61574241 Acesso em: 29 jun. de 2022.
[11] Universidades públicas repudiam PEC que propõe cobrança de mensalidades. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/universidades-publicas-repudiam-pec-que-propoe-cobranca-de-mensalidades/ Acesso em: 30 jun. de 2022.
[12] Administração central da UFES repudia proposta ao fim da gratuidade nas universidades. Disponível em: https://www.ufes.br/conteudo/administracao-central-da-ufes-repudia-proposta-ao-fim-da-gratuidade-nas-universidades Acesso em: 24 jun. de 2022.
[13] Ministro diz que governo diminuiu para R$ 1,6 bi o corte na verba das universidades federais. 2022 Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/06/03/ministro-diz-que-governo-diminuiu-para-r-16-bi-o-corte-na-verba-das-universidades-federais.ghtml Acesso em: 28 jun. de 2022.
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